Clementina de Jesus no 3º episódio sobre Samba do ‘Arquivo Novabrasil’

Lívia Nolla
12:39 23.04.2025
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Lívia Nolla

Cantora e Pesquisadora Musical
Curiosidades

Clementina de Jesus no 3º episódio sobre Samba do ‘Arquivo Novabrasil’

Toda quarta-feira, às 12h, um novo episódio da atração vai ao ar em vídeo, nos nossos canais do Youtube e Spotify

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- 23.04.2025 - 12:39
Clementina de Jesus no 3º episódio sobre Samba do ‘Arquivo Novabrasil’
Clementina de Jesus | Foto: Walter Firmo (Acervo IMS)

O Arquivo Novabrasil é um programa original, que promove a vida e a obra de grandes nomes da música popular brasileira. Artistas que fazem da nossa música um dos nossos maiores legados e pelo que queremos ser lembrados e reverenciados como brasileiros.

Toda quarta-feira, às 12h, um novo episódio do Arquivo Novabrasil vai ao ar em vídeo, nos nossos canais do Youtube e Spotify.

A primeira temporada especial do Arquivo Novabrasil traz a biografia de artistas que ajudaram a construir a história do samba no Brasil. E hoje, vamos conhecer a história dela: Clementina de Jesus!

Lenda da nossa música popular brasileira e uma das maiores sambistas que o Brasil e o mundo já conheceram, Clementina de Jesus tem uma  importância ímpar para a música e a cultura popular brasileira.

Representante da ancestralidade e da sonoridade afro-brasileiras, a artista deixou um grande legado no resgate dos cantos negros tradicionais e na popularização do samba, além de ser vista como um importante elo entre a cultura do Brasil e da África.

Clementina de Jesus foi a síntese do Brasil, expressão de um país de forte herança africana e de singular formação religiosa.

Nascida em 1901, em um tradicional reduto de jongueiros na cidade de Valença, região do Vale do Paraíba, no sul do Rio de Janeiro, Clementina de Jesus também era conhecida como Tina ou Rainha Quelé.

A pequena Clementina viveu a infância na cidade natal, ouvindo sua mãe cantar enquanto lavava as roupas na beira do rio. Assim foi guardando na memória os tesouros que mais tarde gravaria em discos. 

Quando criança, aprendeu com sua mãe – filha de escravizados – rezas em jejê nagô e cantos em dialeto provavelmente iorubá. Destas influências resultam um misticismo sincrético e uma musicalidade marcada pelo samba e pelos cantos tradicionais de escravizados do meio rural.

Clementina se mudou com a família para a capital antes dos oito anos de idade, para o bairro de Oswaldo Cruz, indo estudar em regime semi-interno no Orfanato Santo Antônio, ligando-se também à religião católica. 

Busto de Clementina de Jesus em Valença, Rio de Janeiro

Até os 15 anos, Clementina de Jesus participou do grupo de Folia de Reis, de seu João Cartolinha, renomado mestre da região. Foi João quem levou Clementina para o Bloco As Moreninhas das Campinas, embrião da Escola de Samba Portela, onde ocorriam diversas rodas de samba e onde a sambista conheceu grandes bambas como Paulo da Portela e Ismael Silva. 

Ela também foi diretora das escolas de samba Unidos do Riachuelo e Unidos de Engenho Velho.

Nesse tempo, a voz de Clementina – grave, bela e potente – já chamava a atenção e ela foi convidada pelo cantor, compositor e artista plástico Heitor dos Prazeres para ensaiar suas pastoras, o que fez durante muitos anos. 

Clementina de Jesus se casou com Albino Corrêa Bastos da Silva, conhecido como Albino Pé Grande, e o casal mudou para o Morro da Mangueira no Rio de Janeiro. Com ele, Clementina teve uma filha, Olga, nascida em 1943. O casamento durou até a morte de Albino, em 1977.

Clementina de Jesus e o marido Albino Pé Grande – Imagem: IMS

No Morro da Mangueira, onde passou a frequentar a escola de samba Estação Primeira de Mangueira, Clementina tornou-se Oradora Oficial da Ala da Velha-Guarda e integrante da Ala das Baianas Velhas, que desfilava nas segundas-feiras de carnaval.

Clementina de Jesus na Mangueira, Carnaval do Rio de Janeiro, 1970 – Foto: Geraldo Viola

Ao longo de sua vida, Clementina trabalhou como lavadeira e doméstica por mais de 20 anos. Sua atividade de cantora ela exercia sem a intenção de ser profissional. Cantava porque era preciso cantar, por prazer e alegria.

Até que tudo começou a mudar, quando – em 1963, quando já tinha passado dos 60 anos de idade – Clementina de Jesus foi vista pelo compositor, produtor musical e ativista cultural carioca Hermínio Bello de Carvalho, cantando na Festa da Penha, na Taberna da Glória, restaurante tradicional do Rio de Janeiro. 

Hermínio ficou fascinado pela sambista e quando a reencontrou, na inauguração do restaurante Zicartola – que pertencia ao também sambista Cartola e à sua esposa Dona Zica – e o produtor passou a ensaiar Clementina em sua casa, preparando-a para o espetáculo “Rosa de Ouro”, show que a consagraria como cantora.

Antes disso, Hermínio Bello de Carvalho levou Clementina para participar do projeto de grande sucesso “O Menestrel”, onde a cantora se apresentava ao lado do violonista maranhense Turíbio Santos.

No ano seguinte, 1964, Clementina de Jesus se apresentou no show “Rosa de Ouro”, ao lado de Aracy Cortes, Elton Medeiros, Paulinho da Viola e Nelson Sargento, e com a direção de Hermínio Bello de Carvalho e Kleber Santos.

Clementina de Jesus e Hermínio Bello de Carvalho no espetáculo “Rosa de Ouro” – Imagem: Divulgação
Clementina de Jesus, Paulinho da Viola e Elton Medeiros no espetáculo “Rosa de Ouro” – Imagem: IMS
Clementina de Jesus e o Conjunto Rosas de Ouro  no espetáculo “Rosa de Ouro” – Imagem: IMS

Esse show consagrou o nome de Clementina de Jesus e gerou dois LPs  – o Volume 1 em 1965 e o Volume 2, em 1967 – incluindo, entre outros, o jongo “Benguelê”, de Pixinguinha e Gastão Viana.

A crítica foi unânime em exaltar Clementina de Jesus e seu desempenho, tanto no show quanto nos dois LPs gravados ao vivo, as primeiras gravações da cantora. 

Em 1966, a artista representou o Brasil no Festival de Cannes, na França, e no Festival de Arte Negra, no Senegal, sendo ovacionada em um estádio de futebol. 

No continente africano, participou do Encontro das Artes Negras de Dakar, ao lado de outros bambas como Martinho da Vila e de artistas plásticos como Rubem Valentim.

Clementina de Jesus – Imagem: Walter Firmo – IMS

Ainda em 1966, Clementina de Jesus lançou o LP solo que levou o seu nome, com repertório de jongo, corimá, curimbas, sambas e partido-alto, recuperando  a memória da conexão afro-brasileira.

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Em 1968, a artista participou do álbum “Mudando de Conversa”, também dirigido por Hermínio Bello de Carvalho, ao lado de Cyro Monteiro, Nora Ney e do Conjunto Rosa De Ouro.

Também em 68, Clementina de Jesus gravou o antológico LP “Gente da Antiga”, ao lado de Pixinguinha e João da Baiana, com a produção de Hermínio Bello de Carvalho, e o disco “Fala Mangueira!”, ao lado de Cartola, Carlos Cachaça, Nelson Cavaquinho e Odete Amaral.

A capacidade de Clementina de transmitir poderosa emoção por meio do canto chamou a atenção dos críticos, que, de novo, se renderam aos encantos da sua voz. Em 1970, ela lançou outro álbum solo, chamado Clementina, Cadê Você?”, em que interpretou, entre outras, as canções “Sei lá, Mangueira” de Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho e “Vai de saudade” (de Candeia e Davi do Pandeiro).

Em 1972, Clementina de Jesus participou – ao lado de Tia Doca e Geraldo Filme – do disco “O Canto dos Escravos”, composto de músicas de caráter responsorial – canto coletivo onde uma voz de um solista “chama” a resposta das outras vozes – praticada por escravizados africanos da região de Diamantina, em Minas Gerais.

Em 1973, foi a vez do álbum solo “Marinheiro Só”, cuja faixa-título traz a canção tradicional, adaptada por Caetano Veloso, que se tornou um ícone na voz da artista. Neste mesmo álbum, a própria Clementina fez três adaptações de cantos populares: “Fui pedir às Almas Santas”, “Atraca, atraca” e “Incelença”.

Milton Nascimento, também ficou fascinado por Clementina e convidou a cantora para participar de seu disco “Milagre dos Peixes”, de 1973, gravando com ele a excepcional faixa “Escravos de Jó”, parceria dele com Fernando Brant.

Dois anos depois, Clementina de Jesus foi homenageada outra vez por Milton Nascimento e Fernando Brant na música “Raça”, faixa que deu título ao disco de Milton Nascimento lançado nos Estados Unidos.

Em 1976 a artista lançou o álbum “Clementina de Jesus – convidado especial: Carlos Cachaça”, no qual fez diversas adaptações de jongos, corimás, batucadas e partidos-altos para as faixas tradicionais “Lapa”, “Carreiro bebe”, “Pica-pau”, “Atraca, atraca” e “Fui pedir às almas santas”, entre outras.

E, em 1979, foi a vez do disco “Clementina e Convidados”, do qual participaram João Bosco, Martinho da Vila, Clara Nunes, Ivone Lara, entre outros artistas. Neste mesmo disco, ela figurou também como compositora, ao lado de Catoni, na faixa “Laçador” 

Clementina de Jesus e João Bosco – Imagem: Arquivo Funarte
Clementina de Jesus e Clara Nunes – Imagem: MIS
Clementina de Jesus e Ivone Lara – Imagem: Divulgação

Clementina de Jesus fez também diversas participações em discos de outros artistas, como Adoniran Barbosa, Alceu Valença e Elizeth Cardoso.

Em 1983, Clementina foi homenageada com um espetáculo no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com a participação de Paulinho da Viola, João Nogueira, Elizeth Cardoso e outros nomes do samba. No mesmo ano, foi homenageada pela escola de samba Beija-Flor de Nilópolis, no enredo “A Grande Constelação das Estrelas Negras”.

Clementina de Jesus é homenageada com um espetáculo no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1983 – Foto: Antonio Nery – Agência O Globo
Clementina de Jesus é homenageada em enredo da escola de samba Beija-Flor de Nilópolis, “A Grande Constelação das Estrelas Negras” – 1983 – Foto: Sebastião Marinho – Agência O Globo 

E em 1986, a sambista participou da trilha sonora do filme “Chico Rei”, de Walter Lima Júnior, interpretando as faixas “Quilombo do Dumbá” – Tradicional com adaptação do Grupo Vissungo – e “Chico Reina”, composição de Espírito Santo e Samuka.

Clementina de Jesus cantou diversos pontos de umbanda e candomblé, ladainhas e jongos ao longo da sua vida. 

Mas, apesar da imensidão de sua voz e de seu legado para a música e a cultura negra brasileira, Clementina de Jesus era grande demais para um Brasil tomado pelo racismo estrutural e pela intolerância religiosa. A artista faleceu praticamente no esquecimento, em julho de 1987, aos 86 anos, em função de um derrame.

Não sem antes influenciar uma gama de artistas brasileiros, que – hoje – celebram a  importância gigantesca de sua presença na nossa cultura e para o nosso povo. 

Clementina de Jesus  – Foto: Hipólito Pereira – Agência O Globo

Em 2013, a cantora foi homenageada com o musical “Clementina, cadê você?”, com texto de Pedro Murad, direção Duda Maia, e estrelado por Ana Carbatti, no papel de Clementina de Jesus. 

Musical “Clementina, cadê Você?”, de 2013 Foto: Agência O Globo

Em 2016, o governo brasileiro lhe concedeu, já in memoriam, a Ordem do Mérito Cultural, no grau de grã-cruz, junto com outros sambistas, como parte das comemorações dos 100 anos do nascimento do samba.

Clementina de Jesus foi homenageada em diversas canções da música popular brasileira, como: “Clementina, Cadê Você?” (composição de Elton Medeiros, de 1965) e “P.C.J – Partido Clementina de Jesus” (composição de Candeia, que a cantora gravou ao lado de Clara Nunes em 1977,no LP “As Forças da Natureza”). 

Outras homenagens foram as canções “Clementina de Jesus”, de Zé Keti, em 1981; e “Dona Clementina” (composição de Niva e Luizão 7 Cordas, feita para Jovelina Pérola Negra – artista muito influenciada por Clementina de Jesus – gravar, em 1992, cinco anos depois da morte de Clementina, fazendo referência à canção de Élton Medeiros, de 1965 – “Clementina, Cadê Você?”.

Em 2018, foi lançado na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo o documentário “Clementina”, com direção de Ana Rapper, que conta a história da artista.


Viva a eterna e gigante, Clementina de Jesus!

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