Quem foi o maior versador do Brasil? História e legado dos mestres do repente e do cordel

Clarissa Sayumi
09:55 28.04.2025
Arte e cultura

Quem foi o maior versador do Brasil? História e legado dos mestres do repente e do cordel

Conheça as lendas da poesia do repente e da literatura de cordel que fizeram história no Brasil

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- 28.04.2025 - 09:55
Quem foi o maior versador do Brasil? História e legado dos mestres do repente e do cordel
Quem foi o maior versador do Brasil? História e legado dos mestres do repente e do cordel

Era 1874, feira de Patos, no sertão paraibano. Dois homens se encaram no pátio da igreja, não com armas em punho, mas munidos de versos improvisados. De um lado, Inácio da Catingueira, um poeta negro escravizado e pandeirista; do outro, Romano da Mãe D’Água, fazendeiro desafiador.

Durante horas – alguns dizem dias – a pequena vila vibrou com o duelo. A famosa peleja entre Inácio e Romano, travada naquela vila imperial, inspirou até Graciliano Ramos.

Dizem que Romano, para vencer, apelou a versos repletos de nomes da mitologia grega, tentando embaraçar Inácio, que era analfabeto​. Mesmo diante do “nó” cultural imposto pelo rival, Inácio retrucou com humildade e genialidade repentista. A plateia nunca esqueceu: nascia ali, para a história, a figura mítica do repentista sertanejo, o versador capaz de transformar desafios da vida em arte improvisada.

Essa cena real – quase cinematográfica – ilustra a essência do repente, a cantoria de viola improvisada, e inicia uma jornada pelos caminhos da poesia popular nordestina. Mas afinal, quem foi o maior versador do Brasil? A resposta não é simples. O Brasil é terra de inúmeros mestres do verso oral e escrito, do repente à literatura de cordel.

Repente ou cordel?

Essas duas principais vertentes da poesia popular nordestina, repente e cordel são manifestações irmãs, mas não idênticas.

O repente – também chamado de cantoria de viola – é a poesia cantada e improvisada, praticada em duetos de violeiros que se revezam na criação de estrofes rimadas na hora​. Os repentistas (ou cantadores) enfrentam-se em desafios poéticos, seguindo regras rígidas de métrica, rima e tema, mas com total liberdade criativa no improviso. Cada cantador responde ao outro de imediato.

Divulgação | Prefeitura João Pessoa

Já a literatura de cordel é a poesia escrita em folhetos impressos, pendurados em cordões e vendida em feiras e mercados, para ser lida ou recitada ao público. Diferentemente do repente, o cordel não é necessariamente improvisado; são histórias e versos compostos com antecedência pelos cordelistas, muitas vezes narrando causos, lendas, feitos de heroísmo, humor e crítica social.

O cordel é escrito, mas carrega a oralidade em seu ritmo e metrificação; não raro, um cordelista também declama ou canta seus versos para o público, aproximando-se do repentista.

Literatura_de_cordel

As duas expressões foram reconhecidas oficialmente como patrimônios culturais do Brasil pelo IPHAN – o cordel em 2018​ e o repente em 2021 – tamanha sua importância para a identidade nordestina.

Raízes históricas: os primeiros folhetos de cordel

O nome “cordel” tem origem em Portugal, onde esses folhetos eram expostos em cordas (cordéis) nas feiras. Até meados do século 19, o Brasil importava as publicações​, mas logo poetas locais passaram a criar seus próprios impressos. ´

Em 1900, começavam a surgir cordéis sobre fatos do cotidiano – os chamados “folhetos noticiosos” ou de evento. Grandes acontecimentos nacionais e locais viravam versos de cordel, dos anúncios da República às enchentes e crimes que chocavam o povo.

Nas décadas de 1920 a 1950, viveu-se o auge do cordel impresso: milhares de exemplares eram vendidos em mercados e festas, em bancas improvisadas ou pelas mãos de mascates e poetas. Alguns folhetos chegaram a tiragens de 200 mil exemplares – números surpreendentes para literatura popular.

Havia folhetos para todos os gostos – do romance encantado ao crime verídico, da sátira política à devoção religiosa (com muitas histórias de santos e milagres também)​. Mas, nos anos 1960, a literatura de cordel enfrentou uma crise: a urbanização e a chegada de novos meios de entretenimento reduziram o público das feiras​.

Muitos poetas populares migraram para outras profissões ou passaram a se apresentar em rádios. Mas a arte do folheto sobreviveria graças a iniciativas de revitalização. Em 1970, uma editora de São Paulo (Prelúdio, depois Luzeiro) passou a publicar cordéis em formato de livro, mirando migrantes nordestinos nas grandes cidades​.

Ao mesmo tempo, pesquisadores e universitários redescobriram o cordel como objeto de estudo e valorizaram sua importância cultural. Essa redescoberta marcou o início de uma nova fase, em que o cordel passou a ocupar espaços formais – chegou às escolas, às bibliotecas e até as academias literárias.

Mestres do verso: nomes da história do cordel e do repente

O paraibano Leandro Gomes de Barros (1865–1918) é reconhecido como o primeiro grande cordelista brasileiro. Instalou sua tipografia primeiro no sertão (Pombal-PB) e depois no Recife, e viveu da venda de seus folhetos, tornando-se autor, editor e livreiro de si mesmo​. Seus folhetos – como “O Boi Misterioso”, “O Cachorro dos Mortos” ou “História de João Soldado” – fizeram enorme sucesso, misturando humor, crítica e fantasia.

Pinterest | Reprodução

Leandro escreveu também folhetos que criticavam a política e a sociedade no início da República​, e adaptou contos europeus para o molde rimado. Um de seus legados é “O julgamento do cachorro”, história que inspiraria décadas depois Ariano Suassuna em O Auto da Compadecida. Leandro morreu em 1918, mas abriu caminho para inúmeros seguidores.

Entre esses seguidores, surgiu Francisco das Chagas Batista (1882–1930), outro paraibano que, nos anos 1900, fundou uma tipografia especializada em cordel em Guarabira-PB. Depois, o pernambucano João Martins de Athayde (1880–1959), radicado no Recife, modernizou a impressão dos folhetos, padronizando o formato que se tornaria clássico (capa com xilogravura, tamanho pequeno).

Graças a ele, muitos cordéis clássicos continuaram circulando por décadas, incluindo histórias sobre os cangaceiros do sertão e adaptações de romances universais.

Um dos grandes sucessos desse período foi o folheto “O Pavão Misterioso”, escrito em 1923 por José Camelo de Melo Rezende. Essa história de amor e fantasia – sobre um homem que voa num pavão mecânico para resgatar sua amada da torre – fascinou leitores e ouvintes, sendo reimpressa por quase cem ano.

Reprodução

Outro folheto famoso, de teor mais sátirico, foi “A Chegada de Lampião no Inferno”, de José Pacheco, que imagina o temido cangaceiro encontrando Satanás. Publicado originalmente em 1938, esse cordel cômico tornou-se um best-seller popular, explorando com humor irreverente a figura de Lampião.

Grandes duelos do repente

Voltando ao repente, no início do século 20 despontam repentistas que se tornaram verdadeiros mitos populares. Um nome central é o cearense Aderaldo Ferreira de Araújo (1878–1967), conhecido como Cego Aderaldo. Ao perder a visão na juventude, desenvolveu ouvido e língua afiados e viajou pelos sertões para cantar desafios.

Pinterest | Reprodução

Em 1914, já famoso, travou um embate histórico com o repentista Zé Pretinho do Piauí e saiu vencedor. Foi tão influente que atravessou as fronteiras do Nordeste: durante o ciclo da borracha, viajou ao Amazonas e ao Pará para se apresentar às colônias de migrantes nordestinos. Levou o repente às margens do rio Madeira e Guajará, desbravando a Floresta Amazônica com sua viola.

Severino Lourenço da Silva (1895–1990), o lendário Pinto do Monteiro, natural da Paraíba, ganhou fama como um dos maiores repentistas de todos os tempos. Conhecido pelo estilo ferino e pela rapidez de raciocínio, Pinto era temido adversário nas arenas de cantoria. Diz-se que “não tinha papas na língua” – adorava uma provocação e rebatia qualquer verso com outro ainda mais forte​.

Pinto do Monteiro integrava a chamada “velha guarda” dos repentistas nordestinos, ao lado de nomes como Lourival Batista (1915–1992) – o Louro do Pajeú, mestre insuperável na métrica do martelo agalopado – e Otacílio Batista (1923–2003), ambos pernambucanos do Vale do Pajeú, berço de grandes poetas.

Louro do Pajeú, em particular, era tão respeitado que muitos o consideram o maior versador de todos, pelo menos no improviso metrificado. Ele dominava desafios em décimas (estrofes de dez versos).

Em seus versos, Louro exaltou a natureza, a fé e a astúcia do homem sertanejo. Um de seus motes famosos dizia: “Eu desafio o universo/ Pra fazer verso com assunto sequenciado” – síntese de sua confiança poética. Já Otacílio, seu irmão de cantoria, ficou célebre pelas ironias afiadas e por ter levado o repente ao rádio e à televisão nas décadas posteriores.

Patativa do Assaré: poesia do povo em voz alta

No encontro entre o repente e o cordel, desponta a figura de Antônio Gonçalves da Silva (1909–2002), mundialmente conhecido como Patativa do Assaré. Camponês do Ceará que mal cursou a escola, Patativa tornou-se um dos maiores poetas populares do Brasil, com versos que tocam o coração do sertanejo.

Ele transitava pelas duas tradições: compunha poemas escritos, declamava de memória, mas também improvisava repentes quando desafiado.

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Sua obra mais famosa é “A Triste Partida”, um longo poema que narra o drama da seca e da migração forçada de uma família sertaneja rumo ao Sul maravilha. O poema emocionou tanta gente que o Rei do Baião, Luiz Gonzaga, decidiu transformá-lo em canção.

Gonzaga gravou “A Triste Partida” em 1964, apresentando o texto de Patativa em forma de música para todo o país. Foi um sucesso estrondoso – muitos brasileiros choraram ao ouvir, sem saber, versos de um poeta cearense até então desconhecido nas capitais.

Quando soube do interesse de Gonzaga, Patativa inicialmente reagiu com seu humor característico: desconfiado de ceder sua criação, chegou a dizer pessoalmente ao sanfoneiro que “iria mandá-lo plantar feijão” se não o estimasse tanto. Mas logo permitiu a gravação, exigindo apenas o devido crédito.

Além de “Triste Partida”, Patativa escreveu inúmeros poemas curtos e contundentes, como “Vaca Estrela e Boi Fubá” (sobre um vaqueiro lamentando a morte de seus animais na seca) e sátiras políticas em forma de cordel. Seu estilo mesclava ternura e crítica social, com linguagem simples e metáforas brilhantes.

Mesmo tendo perdido a visão de um olho ainda menino (daí o apelido Patativa, um pássaro de vista curta e canto belo), nunca perdeu de vista as raízes. Recusou convites para sair de sua terra, recebeu títulos honoríficos de universidades e viu seus versos traduzidos em diversas línguas.

Pinto do Monteiro: o “rei” dos repentistas

Se Patativa brilhou nos dois campos, Pinto do Monteiro reinou absoluto na arte do improviso. Nascido em 1895, na cidade de Monteiro (Paraíba), Severino Lourenço – o Pinto – ganhou notoriedade pelas histórias de seus duelos verbais absolutamente impagáveis.

Pequeno vendedor de cuscuz na juventude, descobriu o talento para a poesia improvisada e logo passou a ser convidado para cantar em toda região. Seu nome virou lenda entre os cantadores. Ele era conhecido pelas respostas rápidas e ferinas, que deixavam os oponentes “sem lenço nem documento”.

Vários “causos” de Pinto do Monteiro são contados até hoje. Num desafio famoso, um cantador jovem enaltecia a si próprio dizendo que seu nome seria respeitado para sempre. Pinto, então já idoso, respondeu de supetão com uma sextilha arrasadora: “Você com seu verso decorado/ pode até ter se saído bem./ Porém cantando com Pinto/ a coisa muda de tom também./ Pirata não rouba ouro/ pra dividir com bandido​.

Outra história clássica envolve seu apelido de “cascavel”. Pinto sabia de seu estilo venenoso e ele próprio compôs versos assumindo essa fama. Em certa ocasião, cantando com Joaquim Vitorino, ouviu insinuações sobre um parente seu bêbado. Pinto não deixou por menos e devolveu com uma série de rimas maliciosas, finalizando com este retrato de si mesmo: Eu sou como a cascavel/ que nunca teme a ninguém,/ que se enrosca na vereda,/ morde quem vai e quem vem;/ quando dá um bote errado,/ morre de raiva que tem​.

Pinto do Monteiro viveu quase 95 anos, cantando até o fim da vida. Gravou discos na velhice, participou de programas de televisão e recebeu homenagens em vida como mestre do repente. Para muitos pesquisadores, se existiu um “maior versador do Brasil” no improviso, Pinto certamente está entre os candidatos mais fortes.

Sua figura – um senhor magro de chapéu de couro, viola em punho e língua afiada – simboliza a arte do repente nordestino em sua forma mais pura. Não é por acaso que ele é citado em diversas pesquisas acadêmicas e lembrado em rodas de cantoria até hoje.

Leandro Gomes de Barros: o patriarca do cordel impresso

No universo do cordel escrito, já mencionamos Leandro Gomes de Barros, e vale revisitá-lo como um perfil influente. Leandro foi pioneiro não apenas por questão cronológica, mas pela qualidade e quantidade de sua produção. Nascido em 1865 no sertão paraibano, viveu numa época de transição – pegou o final do Império e os primórdios da República – e retratou isso em verso.

Escreveu cerca de 200 folhetos (algumas fontes citam mais) que circularam amplamente. Seu mérito foi perceber que havia um público ávido por literatura barata e criar uma indústria caseira do cordel.

Entre seus cordéis de destaque estão histórias que caíram no gosto popular e se tornaram praticamente parte do folclore. “Juvenal e o Dragão”, por exemplo, adapta um motivo de conto de fadas (o herói matador de dragão) aos moldes do cordel nordestino.

“O Cavalo que Defecava Dinheiro” insere humor escatológico em crítica à ambição humana. Mas talvez nenhum seja tão emblemático quanto “O Testamento do Cachorro”, também conhecido como “O Enterro do Cachorro”. Nesse folheto, Leandro narra com ironia a história de um cachorro rico cujo dono faz um testamento deixando dinheiro para seu enterro – uma sátira mordaz à hipocrisia religiosa e social.

Anos mais tarde, esse enredo inspiraria diretamente Ariano Suassuna em uma das cenas centrais de O Auto da Compadecida, comprovando a enorme influência de Leandro na cultura brasileira.

Leandro Gomes de Barros é frequentemente chamado de “pai do cordel brasileiro”. Ariano Suassuna o considerava “o maior escritor de literatura popular que o Brasil já produziu”. Mesmo após sua morte, seus folhetos continuaram sendo reeditados por décadas (graças a João Martins de Athayde). Seu feito foi provar que um poeta sertanejo, escrevendo em linguagem simples, poderia viver de poesia e entrar para a história literária do país.

Outros grandes cordelistas: da sátira ao salão nobre

Além de Leandro, muitos cordelistas brilham no panteão do verso popular. José Pacheco (1904–1973), autor de “A Chegada de Lampião no Inferno”, merece menção pelo impacto de sua sátira (seu folheto vendeu milhares de cópias e popularizou a imagem de Lampião dialogando com o diabo​).

Rodolfo Coelho Cavalcante (1917–1986), alagoano radicado na Bahia, foi outro gigante: além de escrever cordéis engajados, fundou em 1980 a primeira Associação de Trovadores e Cordelistas, lutando pelos direitos dos poetas populares.

Cuíca de Santo Amaro (José Gomes, 1895–1964) transitou entre o cordel e a poesia satírica urbana – ele compunha folhetos irreverentes sobre a política na Bahia dos anos 1950 e lia seus versos em comícios, tornando-se temido por coronéis.

Nos anos recentes, a Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC), fundada em 1988 no Rio de Janeiro por Gonçalo Ferreira da Silva e outros, passou a reunir cordelistas de todo o país e dar visibilidade acadêmica ao gênero​.

Entre os cordelistas contemporâneos, um nome jovem ganhou notoriedade nacional: Bráulio Bessa (1985–). Cearense, Bráulio ficou famoso declamando cordéis autorais em programas de TV, como no quadro “Poesia com Rapadura” (da Rede Globo).

Seus versos simples, muitas vezes motivacionais, conquistaram um novo público e mostraram que o cordel pode habitar até as redes sociais. Embora haja quem torça o nariz, acusando-o de ser mais “influencer” que poeta tradicional, não se pode negar seu papel em reacender o interesse pela literatura de cordel entre os jovens do século XXI.

Outra figura de destaque atual é Cleusa Carvalho, conhecida como Dalinha Catunda, cordelista e repentista cearense. Dalinha ocupa uma cadeira na ABLC e é uma das vozes femininas proeminentes nesse universo ainda predominantemente masculino.

Ela, assim como Jarid Arraes (escritora e cordelista do Cariri cearense), traz temáticas feministas e afro-brasileiras para os folhetos, enriquecendo o gênero com novas perspectivas. Essas poetisas contemporâneas estão rompendo barreiras e provando que a mulher também tem vez na roda de glosa e no cordel de feira – algo que, historicamente, era incomum.

Instagram – Reprodução

Vale lembrar que lá atrás, em 1938, uma mulher repentista já havia desafiado Cego Aderaldo (segundo a tradição, a jovem Margarida o venceu num repente improvisado, fato raro para a época). Hoje, felizmente, elas já não são exceção.

Veja também:

11 grandes mestres do repente e do cordel

1- Inácio da Catingueira (c. 1840–1881) — O gênio do improviso escravizado

Figura lendária do repente, Inácio era um ex-escravizado que se destacou pelo improviso em desafios memoráveis. Sua peleja contra Romano da Mãe D’Água tornou-se símbolo da inteligência popular do sertão.

Trecho atribuído a Inácio:

“Não posso com mitologia,
Mas posso com o meu cantar.
Quem canta o que sente e vê,
Não precisa de Homero pra rimar.”

Poeta-Hosma-Passos-e-o-pintor-letrista-Flavio Artes homenageiam figuras ilustres da cultura regional em muros da cidade de Pianco


2- Leandro Gomes de Barros (1865–1918) — O patriarca do cordel

Considerado o “pai do cordel brasileiro”, Leandro escreveu folhetos que misturavam humor, crítica e fantasia, com enorme sucesso popular.

Trecho de O Testamento do Cachorro:

“Deixou dinheiro guardado
Para o enterro do cão.
Mas pra pobre abandonado,
Não dava nem um tostão.”

3- Cego Aderaldo (1878–1967) — O trovador do sertão

Perdeu a visão na juventude e virou lenda do repente, viajando pelo Norte e Nordeste desafiando outros cantadores.

Cego Aderaldo sobre sua arte:

“A viola é meu cavalo,
E a rima, minha estrada.”

4- Pinto do Monteiro (1895–1990) — A cascavel do repente

Severino Lourenço da Silva ficou famoso pela língua afiada e respostas rápidas que desarmavam qualquer adversário em segundos.

Trecho de Pinto, em duelo:

“Eu sou como a cascavel,
Que se enrosca na vereda:
Morde quem vai e quem vem,
Sem temer tropeço ou queda.”

5- João Martins de Athayde (1880–1959) — O editor do cordel

Não apenas cordelista, mas o grande responsável pela disseminação dos folhetos nordestinos no século XX, padronizando o formato clássico que conhecemos hoje.

(Não há trechos autorais tão conhecidos, mas seu trabalho editorial permitiu que histórias como “O Pavão Misterioso” chegassem a centenas de milhares de leitores.)

6- Lourival Batista, o Louro do Pajeú (1915–1992) — O mestre da métrica

Um dos maiores repentistas de todos os tempos, dominava o martelo agalopado e desafiava os próprios limites da rima.

Trecho famoso de Louro:

“Eu desafio o universo
Pra fazer verso com assunto sequenciado.”

7- José Camelo de Melo Rezende (c. 1870–?) — O criador do Pavão Misterioso

Autor do famoso folheto O Pavão Misterioso, misturou romance, aventura e fantasia em versos que marcaram gerações.

Trecho de O Pavão Misterioso:

“Subia aos ares o pavilhão,
Levando um amor na solidão.”

8- Patativa do Assaré (1909–2002) — A voz do sertão

Camponês e poeta, Patativa transitou entre o repente e o cordel, eternizando dramas e alegrias nordestinas.

Trecho de A Triste Partida:

“Setembro passou
Outubro e novembro
Já tamo em dezembro
Meu Deus, que é de nós?”

9- José Pacheco (1904–1973) — O humorista do inferno

Criador de A Chegada de Lampião no Inferno, José Pacheco inovou ao trazer a sátira e a ironia popular para o cordel.

Trecho de Lampião no Inferno:

“Lampião ficou danado
Quando viu que no inferno
Não tinha cangaceiro armado.”

10- Bráulio Bessa (1985–) — O cordelista das redes

Popularizou o cordel para novos públicos através da televisão e internet, trazendo versos motivacionais e resgatando a tradição oral para a era digital.

Trecho de Bráulio:

“Se for pra desistir, desista de ser fraco.
Se for pra chorar, que seja de tanto rir.”

11- Dalinha Catunda — A força feminina do cordel e do repente

Cordelista e repentista cearense, é voz ativa na renovação da tradição, abordando temas feministas e afro-brasileiros nos seus folhetos.

Trecho de Dalinha Catunda:

“Na cantoria eu me insurjo
Como mulher que improvisa:
Desfaço a rede de aço
Com versos em forma de brisa.”

Outros grandes nomes do cordel

  • Francisco das Chagas Batista: pioneiro da impressão de folhetos no sertão.
  • Rodolfo Coelho Cavalcante: defensor dos direitos dos trovadores.

Cordel e repente hoje: legado e continuidade

O século 21 trouxe desafios e oportunidades para os versadores do Brasil. Por um lado, a urbanização e a tecnologia transformaram os modos de transmissão da poesia popular. As cantorias de viola, antes restritas a praças e rádios regionais, agora podem ser vistas no YouTube por audiências globais. Cordéis que antes dependiam de feiras para circular agora ganham versões em e-book ou são compartilhados pelo WhatsApp.

Por outro lado, essa modernização garantiu a sobrevivência e até uma espécie de moda revival do cordel e do repente. Eventos de repentistas ocorrem em centros urbanos, muitas vezes apoiados por editais culturais. Festivais de violeiros reúnem novas duplas de cantadores, mantendo viva a tradição do desafio musical.

Curiosamente, vemos também um diálogo de gerações. Repentistas veteranos, como Ivanildo Vila Nova (1948) e Geraldo Amâncio (1950), ainda se apresentam e treinam os mais jovens.

Ivanildo, famoso por criar o estilo do galope à beira-mar, continua encantando plateias com sua voz potente e versos sofisticados. Geraldo Amâncio, além de cantador, tornou-se um divulgador em programas de TV educativos sobre repentismo.

Por sua vez, jovens da periferia urbana, especialmente ligados ao movimento hip-hop, enxergam nos repentistas seus antepassados do improviso. Não é coincidência que rappers como Emicida tenham feito referências a Inácio da Catingueira em suas músicas – reconhecendo essa linhagem de mestres da rima.

As batalhas de rap que ocorrem nas cidades têm um paralelo evidente com as pelejas de viola do sertão: mudam o ritmo e o figurino, mas a essência – o duelo verbal em busca do verso mais virtuoso – permanece.

No campo do cordel, a contemporaneidade também trouxe diversificação de temas e formatos. Cordelistas hoje versam sobre tudo: da saga de Lampião (ainda muito presente – Lampião e Maria Bonita viraram personagens quase mitológicos de tantos cordéis) às sagas de personagens da cultura pop.

Existem cordéis sobre novelas de TV, sobre heróis de cinema e até cordéis educativos (ensinando gramática, matemática, ecologia em rimas para crianças). Em 2018, por exemplo, quando ocorreu a tragédia do incêndio no Museu Nacional, no Rio, um cordelista lançou um folheto narrando em versos a perda do patrimônio histórico – mostrando que o cordel continua a ser “jornalismo poético” do povo.

No Rio de Janeiro, inclusive, poetas migrantes adaptaram o cordel ao contexto carioca: hoje existem cordéis sobre favelas, samba e futebol. Cordelistas passaram a adotar temas locais, fazendo folhetos sobre a ocupação policial no Complexo do Alemão, sobre enchentes urbanas e folclore suburbano​.

A herança dos versadores nordestinos

Os versadores são guardiões de uma oralidade rica e criativa, que atravessou séculos quase como uma corrente subterrânea, regando a identidade de nosso povo. Os versos de repente e de cordel narraram a vida do sertanejo quando quase nenhum outro meio o fazia: cantaram suas dores, suas lutas, seu humor e sua fé.

Criaram heróis e anti-heróis à imagem do povo – do “gênio escravo” Inácio, que vence simbolicamente seu senhor na rima, ao cangaceiro Lampião, reimaginado no inferno em tom burlesco. Essas narrativas orais e escritas ajudaram a construir a memória coletiva do Nordeste.

Agência Brasil | Reprodução

Poderíamos debater eternamente quem foi o maior versador do Brasil – se foi Pinto com sua língua de cascavel, se foi Patativa com sua poesia universal, se foi Leandro com sua pioneira pena de cordel, ou qualquer outro entre tantos. A verdade é que todos eles, em conjunto, são os maiores, pois juntos mantêm acesa a chama da transmissão oral.

Que suas vozes jamais se calem, pois elas são as vozes e histórias de um povo. Como disse certa vez um guardador de cordéis anônimo: “Enquanto houver injustiça ou alegria no mundo, haverá repente e cordel para contar”.

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