
O que a música “Apesar de Você”, de Chico Buarque, quer dizer?

O que a música “Apesar de Você”, de Chico Buarque, quer dizer?
Driblando a censura, cantor e compositor carioca até conseguiu - por pouco tempo - fazer com que acreditassem que a canção era para uma mulher


Você sabe o que a música “Apesar de Você”, de Chico Buarque, quer dizer?
Grande gênio da nossa música popular brasileira, o cantor e compositor carioca Chico Buarque conseguiu – por um tempo – driblar a censura do regime militar com esta canção, que tornou-se um clássico da nossa história.
Vamos entender como isso foi possível e quais foram as consequências do lançamento dessa música?
“Apesar de Você, amanhã há de ser outro dia”
O ano era 1968 e o Brasil vivia sobre a ditadura militar desde abril de 1964, um regime autoritário e nacionalista que teve início com um Golpe de Estado, que depôs o governo João Goulart, eleito democraticamente, passando o país a ser conduzido por sucessivos governos militares.
Apesar da promessa inicial de uma intervenção breve, o regime se estendeu por 21 anos, consolidando-se por meio da promulgação de sucessivos Atos Institucionais, que ampliaram os poderes dos militares. O mais severo deles foi o Ato Institucional Número Cinco (AI-5), em 1968, que suprimiu direitos civis e fortaleceu a repressão política, permanecendo em vigor por dez anos.
Nesta época, Chico Buarque – aos 24 anos – já havia lançado três álbuns, vencido o II Festival da Música Popular Brasileira com sua canção “A Banda”, e ficado em terceiro lugar na edição seguinte do Festival, com sua canção “Roda Viva”. Chico já era considerado ícone de uma geração e um dos mais promissores nomes da música brasileira.
Em tempos duros de repressão – no auge da ditadura militar e diante da recente instauração do Ato Institucional nº 5 – com o cerceamento das liberdades democráticas, de expressão e das criações libertárias, e autorização de prisões arbitráriasa tortura e morte de opositores políticos.- o artista passou a sofrer forte perseguição e censura.
No dia 26 de junho daquele ano, o artista teve a sua presença na Passeata dos Cem Mil alardeada pela imprensa. Semanas mais tarde, quando sua peça “Roda viva” estreou no Teatro Galpão, em São Paulo, o espaço foi invadido por cerca de 20 elementos do grupo “Comando de Caça aos Comunistas (CCC)”, que, armados com cassetetes e socos-ingleses, agrediram o elenco e quebraram todo o cenário.
Depois que seus amigos e líderes do Movimento Tropicalista, Caetano Veloso e Gilberto Gil – foram presos em dezembro de 1968 e, depois, obrigados a se exilar em Londres, Chico resolveu também partir com a família para o exílio em Roma, na Itália, em janeiro de 1969, ficando na Europa por 14 meses.
Foi nesse clima – quando retornou ao Brasil, em março de 1970 – com o país ainda fortemente comandado pelo regime militar, que Chico Buarque compôs a canção “Apesar de Você”.
Para pesquisadores da obra do compositor, o “você” do verso-título pode ser tanto a própria ditadura quanto o general Emílio Médici, então presidente do país:
“Hoje você é quem manda
Falou, ‘tá falado
Não tem discussão, não
A minha gente hoje anda falando de lado
E olhando pro chão, viu”
Apesar da crítica, Chico trazia na letra da canção uma mensagem de esperança, de que tempos melhores estavam por vir:
“Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
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Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa”
O compositor escreveu a letra e submeteu à censura achando que provavelmente não seria aprovada, mas o censor encarregado de avaliar a canção comeu bola e não viu a mensagem escondida em seus versos.
Na verdade, essa foi a intenção de Chico Buarque: fazer com que os censores achassem que “Apesar de Você” era sobre um relacionamento amoroso que não estava indo muito bem. E foi exatamente isso que ele disse aos censores, quando foi chamado para depor, depois deles descobrirem o que tinham deixado passar: que o “você” da música era “uma mulher mandona, autoritária”.
Mas os militares só perceberam sua falha muito tempo depois, quando já era tarde: a canção já estava super conhecida, há meses em cartaz, tocando nas rádios de todo o país, depois de ter sido lançada no fim de 1970, no formato compacto simples – junto com a canção “Desalento” – atingindo a marca de cem mil cópias vendidas.
Inclusive, com o sucesso da canção, até a cantora Clara Nunes havia regravado “Apesar de Você” no início de janeiro de 1971, acreditando também que a letra se tratava de uma briga entre namorados.
Mas não levou muito tempo até a sociedade entender a canção, uma crítica velada ao regime militar. Não faltaram indiretas de colunistas sociais e locutores de rádio. No dia 9 de janeiro de 1971, por exemplo, uma nota solta na coluna de Nina Chavs no caderno “Ela”, do jornal O Globo, dizia “A última composição de Chico Buarque, ‘Apesar de você’, tem mensagem, tem mensagem”.
Até que, em fevereiro de 1971, o jornalista Sebastião Nery, da “Tribuna da Imprensa”, escreveu que seu filho e os colegas ouviam a música “como se fosse o Hino Nacional”. Sem querer, ele tinha dado a deixa pra tudo começar a desandar.
Nery queria elogiar o samba quando escreveu a nota, mas foi chamado para depor na delegacia. A partir daí, surgiram rumores de que a repressão vetaria o samba.
No dia 12 de abril, o colunista Carlos Swann, do jornal O Globo, publicou: “Ninguém sabe o porquê da proibição de ‘Apesar de você’ no show de Elizeth Cardoso no Canecão. A melodia deveria encerrar o espetáculo, sendo, entretanto, interditada”.
Em 30 de abril, o jornal dizia: “Chico Buarque de Holanda, que chegou ao Recife acompanhado do MPB-4, para apresentação no Geraldão, nada sabe sobre a censura de ‘Apesar de Você’, que continua entre as mais tocadas do país”. Uma semana depois, no dia 7 de maio, os veículos de comunicação receberam uma nota oficial informando sobre a proibição da faixa.
Para não restar dúvida, um grupo de militares invadiu a fábrica da gravadora Phillips e destruiu todas as cópias do compacto ainda no estoque. Da mesma forma, os exemplares que estavam à venda nas lojas foram recolhidos e destruídos.
Mesmo já sendo um sucesso, a canção foi totalmente proibida de ser inclusive mencionada nos veículos, até 1977, quando as regras da ditadura começaram a ser flexibilizadas, e o país caminhava para o retorno à democracia de forma “lenta, gradual e segura”, conforme os planos dos militares.

Mais perseguição à Chico Buarque
Quando os militares se deram conta de que “Apesar de Você” tinha passado despercebida pela censura, o responsável foi punido, mas não tanto quanto o próprio Chico Buarque, que ficou marcado e passou a ser ainda mais tolhido:
“De cada três músicas que faço duas são censuradas. De tanto ser censurado, está ocorrendo comigo um processo inquietante. Eu mesmo estou começando a me autocensurar. E isso é péssimo”, disse o poeta antes de um show no Canecão.
A partir daí, vários trabalhos de Chico foram censurados, como a música “Cálice”, parceria com Gilberto Gil, e a peça “Calabar: o elogio da traição”, escrita com Ruy Guerra e proibida no dia da estreia, 20 de outubro de 1974, no Rio, quando o espetáculo já estava todo pronto.
No mesmo ano, Chico lançou “Sinal fechado”, um disco inteiro com músicas de outros autores, com exceção da faixa “Acorda, amor”, assinada por Julinho da Adelaide, pseudônimo que o músico inventou para despistar a repressão.
Quem também sofreu consequências por ter gravado “Apesar de Você” foi Clara Nunes: o presidente da Odeon, Henry Jessen, foi intimado para dar explicações sobre as intenções de Clara ao regravar a canção.
Jessen – que também era advogado – mantinha um bom relacionamento com os militares, o que possibilitou que ele fizesse um acordo com o governo para colocar um fim ao mal-entendido e provar que Clara não teve qualquer intenção político-partidária ao regravar a canção. Ficou combinado que a cantora gravaria, em um compacto simples, o “Hino das Olimpíadas do Exército”, composto por Miguel Gustavo, publicitário responsável pela ufanista “Pra frente, Brasil”. Clara Nunes também teve que interpretar a canção na cerimônia de abertura das Olimpíadas do Exército de 1971, em Belo Horizonte.
As coisas só começaram a melhorar nesse aspecto mesmo em 1977, quando “Apesar de Você” voltou a tocar em algumas rádios. No ano seguinte, a canção entrou como a última faixa do lado B do álbum “Chico Buarque”.