
A história por trás de ‘Grande Sertão: Veredas’: Por que esse livro é considerado ‘impossível’ de traduzir?
A história por trás de ‘Grande Sertão: Veredas’: Por que esse livro é considerado ‘impossível’ de traduzir?
Com linguagem inventiva e alma sertaneja, o clássico de Guimarães Rosa fascina leitores e desafia tradutores no mundo todo. Entenda o porquê.


Existe um livro que se recusa a caber em outro idioma. Um romance que mistura o português com criações próprias, sons de vozes sertanejas, termos do mato e da alma. Grande Sertão: Veredas, publicado em 1956 por João Guimarães Rosa, é tudo isso — e mais.
Aclamado por críticos e estudiosos, o livro também é conhecido como um dos maiores pesadelos dos tradutores. Como levar para outras línguas um texto que parece reinventar o próprio idioma?
A resposta passa por mais do que técnica: envolve cultura, história, oralidade e uma forma de pensar que desafia dicionários e gramáticas. Nesta matéria, você vai descobrir porque a obra é considerada “intraduzível”, quais foram os caminhos (e tropeços) dos que tentaram esse feito, e como a tradição oral brasileira ajuda a compreender a força da palavra falada que Rosa eternizou no papel.
A gênese de uma obra
João Guimarães Rosa começou a escrever Grande Sertão: Veredas ainda nos anos 1940, enquanto atuava como diplomata. Mas o livro foi maturado ao longo de décadas de anotações, leituras de etnografia, escutas atentas aos falantes do sertão e experiências em viagens a cavalo pelo interior de Minas Gerais.

Segundo o Instituto Moreira Salles, o autor mantinha cadernos em que anotava palavras incomuns, frases ouvidas no sertão, provérbios e expressões locais — muitas das quais se transformaram em matéria-prima da obra.
O livro foi lançado em 1956, junto com o volume de contos Corpo de Baile, e marcou uma ruptura na literatura brasileira: não apenas pela inovação formal, mas por apresentar o sertão como espaço metafísico, onde o bem e o mal, o amor e a morte, a fé e a dúvida convivem com intensidade.

A proposta de Rosa era clara: “Meu negócio é com a linguagem”, afirmou em uma de suas raras entrevistas. Mas seu interesse ia além das palavras — ele queria revelar uma visão de mundo profundamente brasileira, ancorada em contradições, ambivalências e sabedorias não acadêmicas. A história por trás do livro é, portanto, a de um escritor que quis criar uma forma de literatura brasileira — e conseguiu.
Uma obra que dobra a língua (e o pensamento)
O romance é narrado em primeira pessoa por Riobaldo, um ex-jagunço que rememora sua trajetória entre guerras, dilemas existenciais e um amor por Diadorim — tudo em uma linguagem que parece ser pensada com o corpo inteiro. Guimarães Rosa criou um idioma próprio: fundiu arcaísmos, regionalismos, neologismos e estruturas sintáticas que rompem com o português normativo.

Tradutores do mundo todo já tentaram verter a obra para outros idiomas. Alguns conseguiram publicar versões aclamadas, mas sempre com perdas — ou transformações — inevitáveis. O norte-americano James L. Taylor, em entrevista à The Paris Review, afirmou que Rosa exige não apenas tradução, mas “criação paralela”.
A italiana Barbara Spallino, em estudo publicado pela Università degli Studi di Milano (2019), diz que Grande Sertão “não se traduz — se transpõe, com perdas que doem como cortes”.

Cada palavra no livro carrega duplo, triplo sentido. Frases inteiras nascem de distorções intencionais, como em:
“O correr da vida embrulha tudo.”
Ou ainda:
“O diabo existe mesmo? Ou é só o homem sozinho no escuro?”
Veja também:
Traduzir isso não é apenas trocar palavras, mas decifrar códigos culturais.
Raízes na oralidade: o eco dos poetas do sertão
O estilo de Guimarães Rosa também dialoga com a tradição da oralidade popular brasileira — herança da qual fazem parte os poetas de cordel e os repentistas. São eles que há séculos treinam a arte de contar histórias, improvisar rimas e tensionar o idioma com criatividade.

Leandro Gomes de Barros (1865–1918)
Um dos fundadores da literatura de cordel no Brasil, Leandro tratava com humor e crítica social temas como ganância, justiça divina e dilemas morais — os mesmos que atravessam Grande Sertão.
Patativa do Assaré (1909–2002)
Poeta cearense que soube transformar o sofrimento nordestino em lirismo. Como Rosa, falava do sertão com dignidade e poesia.
As traduções possíveis
Apesar dos desafios, Grande Sertão: Veredas já foi traduzido para diversas línguas. A versão francesa de Maryvonne Lapouge-Pettorelli foi aclamada por sua ousadia. Já a tradução alemã de Curt Meyer-Clason é considerada uma das mais fiéis ao espírito da obra, segundo a Deutsche Welle. Mesmo assim, como apontou a pesquisadora Luciana Villas-Boas, “toda tradução do Rosa é uma criação autônoma”.

Em artigo acadêmico publicado pela UFRJ (2020), a pesquisadora Mariana Ferreira destaca que as traduções mais bem-sucedidas são as que aceitam perder a literalidade para preservar a musicalidade e o espanto que o texto original provoca.
Traduzir Rosa é entender o Brasil

O motivo pelo qual Grande Sertão: Veredas é tão difícil de traduzir está no fato de que ele não é apenas um livro — é uma experiência cultural, linguística e filosófica. Traduzir Rosa é tentar traduzir o sertão, o pensamento não linear, a religiosidade ambígua e o idioma oral de uma gente que fala com o coração, o corpo e o chão.
Por isso, mais do que intraduzível, Grande Sertão é insubstituível. E talvez seja esse seu maior poder: obrigar o leitor — brasileiro ou estrangeiro — a escutar com outros ouvidos.