Especial: 10 poemas marcantes e encantadores de Adélia Prado
Especial: 10 poemas marcantes e encantadores de Adélia Prado
Poeta mineira que trouxe o cotidiano feminino e espiritual para a literatura brasileira. Vamos revisitar alguns dos seus poemas mais importantes
A poesia de Adélia Prado é um convite para enxergar a beleza que se esconde nos detalhes mais simples do dia a dia. Sua obra é uma celebração da vida e do feminino, transformando experiências comuns em literatura universal e trazendo temas que tocam fundo na alma e revelam a beleza das pequenas coisas da vida.
Ligada ao Modernismo, a também professora, filósofa, romancista e contista é considerada a maior poetisa viva do Brasil.
Adélia Prado: A Vida e a Obra de uma Poeta Singular
Adélia Prado nasceu em Divinópolis, Minas Gerais, em 1935. Professora por formação, ela exerceu o magistério durante 24 anos, até que a carreira de escritora tornou-se a atividade central.
A estreia literária veio em 1976, aos 40 anos, com o livro de poemas Bagagem, impulsionado pela aprovação de Carlos Drummond de Andrade, que elogiou sua capacidade única de transformar o cotidiano em poesia.
Desde então, Adélia tem explorado temas como a fé, a maternidade, o amor, a religiosidade e a vida doméstica, sempre com uma linguagem acessível e um olhar atento à simplicidade.
Em 1978, a autora lançou o livro O Coração Disparado, que recebeu o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro. No ano seguinte, fez sua estreia em prosa, com Soltem os Cachorros.
A trajetória de Adélia Prado é marcada pela sua habilidade em expressar o universo feminino com profundidade e beleza, desnudando as emoções de forma lírica e ao mesmo tempo visceral. Sua poesia é permeada de espiritualidade e de um encantamento pelo mundo que mistura o divino e o mundano.
Essa perspectiva sensível transformou Adélia Prado em uma referência na poesia brasileira contemporânea, mantendo sua produção literária ativa e admirada por leitores de todas as idades.
Em 2024, Adélia tornou-se a terceira escritora brasileira (e primeira escritora mineira) a vencer o prêmio Camões em 35 anos.
10 Poemas Marcantes de Adélia Prado
1 – Casamento
Um dos poemas mais emblemáticos de Bagagem, onde Adélia reflete sobre o amor conjugal de forma terna e realista. Ela aborda o casamento como algo simultaneamente belo e prosaico, captando a profundidade dos sentimentos em meio ao cotidiano.
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como ‘este foi difícil’
‘prateou no ar dando rabanadas’
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.
2 – Com Licença Poética
Uma obra em que a poeta fala sobre sua identidade como mulher e como escritora. Neste poema, também do livro Bagagem, Adélia aborda a resistência em se conformar aos papéis tradicionais, misturando delicadeza e força.
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
3 – Orfandade
Aqui, Adélia Prado traduz a experiência do desamparo e da solidão com uma precisão comovente. O poema, que também faz parte do livro Bagagem, revela a vulnerabilidade humana diante da ausência, em um tom que mistura resignação e ternura.
Meu Deus,
me dá cinco anos.
Me dá um pé de fedegoso com formiga preta,
me dá um Natal e sua véspera,
o ressonar das pessoas no quartinho.
Me dá a negrinha Fia pra eu brincar,
me dá uma noite pra eu dormir com minha mãe.
Me dá minha mãe, alegria sã e medo remediável,
me dá a mão, me cura de ser grande,
ó meu Deus, meu pai,
meu pai.
4 – Ensinamento
Com uma leveza marcante, Adélia reflete sobre as lições que a vida ensina, comparando-as com ensinamentos universais. O poema traz a sabedoria de quem enxerga a vida como um constante aprendizado.
Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou comigo:
“Coitado, até essa hora no serviço pesado”.
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.
(Poesia Reunida, 1991)
5 – A Serenata
Este poema fala do encantamento e da inocência dos primeiros amores. Adélia Prado retrata a serenata como um ato romântico e ingênuo, que revela o lado doce das emoções juvenis
Uma noite de lua pálida e gerânios
ele viria com boca e mãos incríveis
tocar flauta no jardim.
Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobro
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
— só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?
6 – Alfândega
Adélia explora o sentido de pertencimento e o confronto com o desconhecido, onde a autora trabalha o desejo de ir além do que se conhece, mas com um toque de resistência.
O que pude oferecer sem mácula foi
meu choro por beleza ou cansaço,
um dente exraizado,
o preconceito favorável a todas as formas
do barroco na música e o Rio de Janeiro
que visitei uma vez e me deixou suspensa.
‘Não serve’, disseram. E exigiram
a língua estrangeira que não aprendi,
o registro do meu diploma extraviado
no Ministério da Educação, mais taxa sobre vaidade
nas formas aparente, inusitada e capciosa — no que
estavam certos — porém dá-se que inusitados e capciosos
foram seus modos de detectar vaidades.
Todas as vezes que eu pedia desculpas diziam:
‘Faz-se de educado e humilde, por presunção’,
e oneravam os impostos, sendo que o navio partiu
enquanto nos confundíamos.
Quando agarrei meu dente e minha viagem ao Rio,
pronto a chorar de cansaço, consumaram:
‘Fica o bem de raiz pra pagar a fiança’.
Deixei meu dente.
Agora só tenho três reféns sem mácula.
7 – Momento
Neste poema, a poeta captura a importância dos instantes que, por serem efêmeros, são também preciosos. É uma reflexão sobre o valor do presente e o modo como ele pode definir nossa percepção do mundo.
Enquanto eu fiquei alegre,
permaneceram um bule azul com um descascado no bico,
uma garrafa de pimenta pelo meio,
um latido e um céu limpidíssimo
com recém-feitas estrelas.
Resistiram nos seu lugares, em seus ofícios,
constituindo o mundo pra mim, anteparo
para o que foi um acometimento:
súbito é bom ter um corpo pra rir
e sacudir a cabeça. A vida é mais tempo
alegre do que triste. Melhor é ser.
8 – Dona Doida
Um dos poemas mais conhecidos de Adélia, onde ela reflete sobre a complexidade e as contradições da vida. Dona Doida é quase um manifesto sobre o viver, permeado de intensidade e emoção.
Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso
com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.
9 – Um jeito
Meu amor é assim, sem nenhum pudor.
Quando aperta eu grito da janela
— ouve quem estiver passando —
ô fulano, vem depressa.
Tem urgência, medo de encanto quebrado,
é duro como osso duro.
Ideal eu tenho de amar como quem diz coisas:
quero é dormir com você, alisar seu cabelo,
espremer de suas costas as montanhas pequenininhas
de matéria branca. Por hora dou é grito e susto.
Pouca gente gosta.
10 – Janela
A janela simboliza o olhar para fora e para dentro, um espaço de contemplação que Adélia usa para expressar a transitoriedade da vida e a busca por sentido.
Janela, palavra linda.
Janela é o bater das asas da borboleta amarela.
Abre pra fora as duas folhas de madeira à-toa pintada,
janela jeca, de azul.
Eu pulo você pra dentro e pra fora, monto a cavalo em você,
meu pé esbarra no chão. Janela sobre o mundo aberta, por onde vi
o casamento da Anita esperando neném, a mãe
do Pedro Cisterna urinando na chuva, por onde vi
meu bem chegar de bicicleta e dizer a meu pai:
minhas intenções com sua filha são as melhores possíveis.
Ô janela com tramela, brincadeira de ladrão,
claraboia na minha alma,
olho no meu coração.
por Lívia Nolla