
Sucessos de Raul Seixas que o eternizaram como “Maluco Beleza”

Sucessos de Raul Seixas que o eternizaram como “Maluco Beleza”
O músico baiano criou algumas das músicas mais incríveis da história da música popular brasileira com seu jeito único de ser


Hoje, vamos entender os sucessos que eternizaram Raul Seixas como o “Maluco Beleza” da música nacional.
Raul Seixas é e sempre será o nosso eterno “Maluco Beleza”! E não é por acaso que ele é chamado assim. O músico criou algumas das canções mais incríveis da história da música popular brasileira com seu jeito único de ser e transformou para sempre a nossa sociedade.
“Eu vou ficar, ficar com certeza, Maluco Beleza”
O cantor, compositor, multi-instrumentista e produtor baiano foi um dos mais autênticos e geniais artistas que o mundo já conheceu.
Poeta nato, Raul Seixas foi também um dos pioneiros do rock brasileiro – muitos o consideram o pai do rock no país – e influenciou uma geração de artistas com a sua música, sua irreverência e autenticidade.
Um artista adiante de seu tempo, Raul Seixas lançou 17 discos em 26 anos de carreira e inovou ao misturar o rock’n roll com o baião, trazendo brasilidade ao gênero e introduzindo uma nova vertente musical no Brasil.
Mais tarde e sempre inovador, Raul utilizou-se das influências também do folk, do country e do blues, além de outros ritmos nordestinos e do rock psicodélico.
Ele ocupa a posição 19, na lista dos 100 Maiores Artistas da Música Brasileira, promovida pela Revista Rolling Stone, em 2008.
Sua obra traz canções com mensagens impactantes, que unem protesto e críticas políticas e sociais – com um tom contestador e muitas vezes irônico – a angústias existenciais, misticismo, metafísica e filosofia, com ideais muito particulares.
Mesmo muitos anos após a sua morte, a obra de Raul Seixas continua vivíssima e cultuadíssima, sendo um dos artistas de maior importância da música brasileira, uma lenda nacional. Quem nunca ouviu um “Toca, Raul!” vindo da plateia de qualquer show, em qualquer época?
Agora, vamos entender os sucessos que eternizaram Raul Seixas como o “Maluco Beleza” da música nacional.
Os sucessos de Raul Seixas que o eternizaram como o “Maluco Beleza”
- 1 – Ouro de Tolo
Em 1973, Raul Seixas lançou seu primeiro disco solo, “Krig-Ha, Bandolo!”, que conta com a clássica canção Ouro de Tolo, em que relata em forma de crônica – com uma letra bastante autobiográfica – sobre seu tempo de fome e dificuldades quando chegou de Salvador – sua cidade natal – ao Rio de Janeiro, antes de tornar-se conhecido.
O título da canção, “Ouro de Tolo”, é uma expressão que existe mesmo: há um mineral chamado pirita, que é formado pela união de um átomo de ferro com dois átomos de enxofre. Essa combinação resulta em um metal dourado, mas não tão dourado quanto o ouro.
Só que muitas pessoas não sabem fazer essa diferenciação e – ao longo da história – muita gente comprou a pirita pensando que era ouro, ou então encontrou a pirita na natureza e tentou vender achando que era ouro, daí vem a expressão “Ouro de Tolo”.
Raul Seixas também se inspirou no costume dos falsos alquimistas que, na idade média, prometiam transformar chumbo em ouro, e apresentou uma crítica ácida sobre os sonhos e anseios patéticos da sociedade, em uma letra repleta de críticas sociais e econômicas.
A canção “Ouro de Tolo é um deboche e um ataque ao conformismo do país a respeito das ilusórias vantagens oferecidas pela ditadura militar e seu “milagre econômico”, e o “disco voador” seria uma referência a uma nova sociedade a ser construída, com despertar da consciência individual, visando à construção do que futuramente o cantor (junto com seu parceiro Paulo Coelho) chamaria de Sociedade Alternativa.
Surpreendentemente, a música não foi barrada pela censura e pôde ser lançada.
Na época, Paulo Coelho – parceiro de Raul em várias letras e que gostou muito do que o amigo compôs em Ouro de Tolo – com todo o seu conhecimento em marketing e imprensa, propôs que eles fizessem uma grande passeata, convocando vários amigos e conhecidos, a saírem tocando a canção pelas ruas do Rio de Janeiro, na hora do rush, convocando a imprensa para acompanhar.
O cortejo fez tanto barulho que saiu até no Jornal Nacional, impulsionando ainda mais o sucesso da grande canção e transformando para sempre a carreira de Raul Seixas, que transformou-se em um ícone nacional a partir de então.
Uma curiosidade é que, nesta época, o Raul Seixas tinha mesmo conseguido comprar um carro Corsel 73. Só que, da primeira vez que “Ouro de Tolo” foi gravada – em duas versões , dentro de compacto lançado pouco antes do primeiro álbum de Raul – uma das versões da canção não citava a marca do carro, trocando a frase “Eu devia estar feliz porque consegui comprar um Corcel 73” por “Eu devia estar feliz porque consegui comprar meu carrão 73”.
Acredita-se que isso foi feito para que não houvesse propaganda gratuita para o Corsel quando a música fosse executada em programas de TV.
Outra curiosidade sobre a canção – contada por Jotabê Medeiros, no livro Raul Seixas – “Não Diga que a Canção está Perdida”, de 2019, é que Raul realmente foi ao zoológico com a família antes de compor a Ouro de Tolo e viu uma mulher de casaco de pele, meia e sapato jogando pipoca na jaula dos macacos.
Em reação à atitude da mulher, um macaco jogou fezes em direção a ela, o que fez o nosso Maluco Beleza dar muita risada, transformando aquela cena também em uma ácida crítica social.
A letra de “Ouro de Tolo” passou pela censura em um primeiro momento, mas – logo que lançada e com o sucesso que a música atingiu – os censores começaram a sacar que Raul Seixas podia estar debochando da ditadura militar e do milagre econômico.
Essa pulga atrás da orelha na censura deu origem a um documento interno na aeronáutica, que colocava o artista “em suspeita” pela letra de “Ouro de Tolo” e também citando Paulo Coelho e sua esposa na época.
Aos censores, Raul respondia que a letra era uma crítica “não a pessoa de Roberto Carlos, mas ao esquema que ele representa”, querendo dizer que o que citava na letra era sobre os “queridinhos do sistema”, como Roberto, que fizeram muito sucesso com muita facilidade (no entendimento dele), enquanto ele – que era questionador – encontrou mais resistência e obstáculos para mostrar o seu trabalho.
Segundo o livro de Jotabê Medeiros, Raul usou o sucesso “Sentado à Beira do Caminho” – de Roberto e Erasmo Carlos – para fazer a sua crítica. As duas canções, “Ouro de Tolo” e “Sentado à Beira do Caminho”, tem o início bastante parecido.
Além disso, na música “A Montanha”, de 1972, Roberto cantava “Obrigado Senhor, mesmo que eu chore”. E Raul canta, em Ouro de Tolo: “Eu devia ter agradecido ao Senhor por ter tido sucesso”.
- 2 – Metamorfose Ambulante
Embora a canção só tenha sido lançada em 1973, no álbum “Krig-Ha, Bandolo!”, o verso emblemático “Eu prefiro ser essa Metamorfose Ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo” foi escrito por Raul Seixas quando ele ainda era uma criança e tinha entre 12 e 13 anos: ele rabiscou isso na parede de seu quarto na Bahia.
Em seu livro, Jotabê Medeiros conta que esse verdadeiro hino do repertório de Raul foi composto inspirado no livro em formato de poemas “Metamosfoses”, do poeta latino Ovídio (ano 8 d.C), considerado uma obra-prima, que era um dos livros da biblioteca do pai do cantor.
Esse livro conta a história da humanidade, utilizando elementos da mitologia romana, e a questão da metamorfose é trazida diversas vezes, como por exemplo, humanos se transformando em objetos ou em constelações.
Tem uma passagem em que o autor fala de formigas que viram humanos. Raul Seixas leu muito sobre filosofia antes de iniciar a carreira como músico e isso influenciou muito as ideias que ele colocou nas letras. Ele falou sobre isso em 1987 numa entrevista para a revista BIS, quando questionado sobre quais as coisas que leu e que foram realmente significativas para ele:
“Tudo o que eu estudei. Estudei latim só para ler ‘Metamorfose’ de Ovídio. Me formei em Filosofia, Inglês Arcaico… Estudei muito Psicologia, fui a fundo mesmo, mas não levei adiante. Estudei Direito… mais Filosofia mesmo, fui até além do que devia.”.
A ideia que Raul Seixas quis passar com a letra de “Metamorfose Ambulante” não é exatamente contar a evolução da humanidade. Em um depoimento em vídeo que ele deu, em 1973, o artista revelou que – com essa letra – queria questionar as verdades absolutas:
“Minha música não vem propor nenhuma verdade absoluta, porque verdades absolutas não existem. E eu venho aqui com a música apenas abrir as portas para que as verdades individuais possam surgir livremente, tá entendendo?”.
Também em 1973, para o jornal O Pasquim, Raul deu uma entrevista em que ele foi perguntado sobre as referências literárias dele e como isso influenciava nas suas letras:
“Eu sou muito dado a filosofias, eu estudei muito filosofia, principalmente a metafísica, ontologia. Minha infância foi formada por, vamos dizer, um pessimismo incrível de Augusto dos Anjos, de Kafka, Schopenhauer. Depois eu fui canalizando e divergindo, captando as outras coisas, abrindo mais e aceitando as outras coisas. Estudei literatura, comecei a ver as coisas sem verdades absolutas.”.
Em uma outra entrevista, no mesmo ano, para o Diário Popular, Raul Seixas diz que suas ideias mais básicas sobre a vida estão definidas na letra de “Metamorfose Ambulante”. E cita o exemplo de um cerco cheio de pessoas dispostas a arrebentar as cercas: “É isso esse negócio da verdade absoluta. O disco quer apenas abrir as portas, pra deixar passar a boiada das ideias e pensar pensamentos individuais. Não apresenta nenhuma ideia definitiva, apenas mostra como pode ser”.
É importante a gente entender que a sociedade da época vivia uma polarização: quem estava do lado do regime militar e quem estava do lado da esquerda universitária, e o movimento hippie ali no meio do caminho, procurando interpretar o mundo, se utilizando do realismo fantástico, do misticismo, procurando respostas em outras verdades.
E é ali que estavam Raul e seu parceiro Paulo Coelho, que inclusive foram presos e exilados em tempos de ditadura militar.
Em outro trecho dessa entrevista, Raul Seixas dá a entender que também quis dar uma cutucada no pessoal da MPB com “Metamorfose Ambulante”. O seu objetivo era transmitir ideias, ampliar os seus contatos e o alcance de seu universo e ele não queria entrar em um processo de interiorização, como ele achava que vinha acontecendo com os trabalhos de vanguarda da música brasileira, cada vez mais herméticos e fechados em torno de si.
Raul dizia que não queria ser inserido em movimento nenhum, o que, portanto, o autorizava a ser uma “Metamorfose Ambulante”. e ficar mudando o tempo inteiro o seu conceito.
- 3 – Sociedade Alternativa
Como já citado na música anterior, a “Sociedade Alternativa” foi umafilosofia defendida por Raul Seixas durante toda a sua vida e inspirou várias de suas composições.
O cantor e compositor baiano seguia as ideias do ocultista britânico Aleister Crowley – autor do famoso Livro da Lei e criador da doutrina Thelema – e estava bastante envolvido em suas teorias.
De acordo com Crowley, o livro foi ditado para ele por um ser chamado Aiwass, em 1904, por meio de uma voz que vinha do lado esquerdo de seu ombro.
Foi nele que Mister Crowley, como era conhecido por seus seguidores, escreveu a lendária frase “Faze o que queres, há de ser o todo da lei”. Para ele, essa era a regra suprema que deveria reger o mundo, a “liberdade absoluta”, também chamada de “Lei da Thelema”.
Assim, em uma forma de organização anarquista, o ser humano seria livre para fazer o que ele bem entendesse.
Toda essa ideia de anarquia e espírito livre desagradou as autoridades britânicas da época. Tanto que a imprensa local chegou a chamar Aleister Crowley de “o homem mais perverso do mundo”, “satanista” e “besta 666”.
Apesar de todas as controvérsias, Crowley conquistou inúmeros admiradores, entre anônimos e famosos, como os Beatles e Jimmy Page.
E a Thelema, criada por ele, nada mais é do que a expressão prática dos seus ensinamentos. Além da lei da liberdade, ela também reúne princípios morais e filosóficos, todos de acordo com o pensamento de Crowley e seus seguidores.
Além de Raul Seixas, outras personalidades, como o seu futuro parceiro de composições, o escritor Paulo Coelho, também seguiam o bruxo.
Raul conheceu Paulo em 1973, ao ler um texto que o escritor havia publicado na revista “A Pomba”.
Da admiração pela leitura nasceu uma amizade entre os dois, refletida no sucesso das músicas que criaram em conjunto. Algumas delas, inclusive, são as mais ouvidas de Raul Seixas.
Naquela época, Coelho já estava em contato com o thelemita brasileiro Marcelo Ramos Motta. Foi com ele que, na década de 1970, a dupla adquiriu os primeiros materiais sobre ocultismo, misticismo e toda a ideologia envolvendo a Thelema.
Percebendo o entusiasmo dos artistas, Marcelo ficou motivado a difundir ainda mais o pensamento de Crowley e ainda contribuiu para a composição de algumas canções. “Tente Outra Vez”, “A Maçã” e “Novo Aeon”são exemplos delas, todas escritas de acordo com a ideia de liberdade e amor dos thelemitas.
Foi dessa troca de conhecimento e de teorias filosóficas que surgiu a chamada Sociedade Alternativa. Uma forma de organização que preza, acima de tudo, pela liberdade dos seres em suas vivências e relações.
A “Sociedade Alternativa” foi criada em 1973, no mesmo ano do encontro entre Raul Seixas e Paulo Coelho. O seu registro em cartório aconteceu em 1974, quando ela passou a existir como organização civil.
A sede era o próprio apartamento de Raul, no Rio de Janeiro, mas os seus criadores almejavam muito mais. A ideia era criar uma comunidade em Minas Gerais para os seus seguidores, a “Cidade das Estrelas”.
No entanto, infelizmente, o cantor e o escritor foram exilados durante a Ditadura Militar e, ao retornarem ao Brasil, dissolveram a “Sociedade Alternativa”. O documento oficial de dissolução data de 1976.
Apesar disso, ela continua viva entre os fãs de Raul Seixas, do Paulo Coelho e do ocultismo.
A música “Sociedade Alternativa”, lançada no ano seguinte, ajudou a popularizar as ideias dessa organização e é até hoje cantada e reproduzida pelos seus seguidores.
- 4 – Gita
Em vídeo publicado pelo canal do Sylvio Passos, Raul Seixas refletiu acerca dos significados por trás do clássico “Gita”:
“As pessoas me perguntam como se fala ‘Gita’. A pronúncia correta é ‘Guita’. Vem do livro indiano ‘Bagavadeguitá’, que seria como a bíblia para nós. É um livro antigo e ninguém sabe quem escreveu. Deve ser um dos mais antigos da humanidade.
Ele fala sobre a história da revelação do todo, do absoluto, que é Deus. A grande resposta. O resultado é que Krishna, que é a representação do todo, diz no livro para um guerreiro chamado Arjuna, sobre a chave da resposta para as perguntas.
Quando falo na letra ‘Sou isso, Sou aquilo’, não sou eu. De maneira nenhuma. É cada um de vocês. Nós somos a coisa mais importante no universo. O todo quis assim. Somos o próprio processo histórico e o equilíbrio cósmico.
Então, cada um é sua própria estrela. Cada um gira em torno de si, embora, nesse plano, tenhamos que interagir. Acho legal elucidar a música, porque às vezes começamos a ouvir uma música e não sabemos do que se trata. Ela trata de cada pessoa mesmo”.
Raul Seixas e Paulo Coelho se inspiram em trechos do livro indiano “Bhagavad Gîtâ”, um poema filosófico que compreende os capítulos 23 a 41 do “Bhismaparwa”, uma das seções do livro “Mahâbhârata”.
O poema, portanto, é o mais lido, mais discutido e mais examinado de toda a literatura sânscrita, podendo ser definido como um patrimônio espiritual de toda a humanidade.
O que Paulo e Raul fizeram nessa canção foi traduzir e tornar mais acessível ao público brasileiro o diálogo entre o deus Krishna e o herói Arjuna. As estrofes da canção Gita estão baseadas na pergunta feita por Arjuna a Krishna: “Quem és tu?”. O questionamento do guerreiro dá origem à resposta do deus.
- 5 – Let Me Sing
“Let Me SIng, Let Me Sing” foi a música que lançou Raul Seixas para o mundo e que iniciou a sua história como artista solo – depois dele se apresentar por alguns anos como Raulzito e os Panteras e de ter passado muitos anos sendo produtor musical de outros artistas.
Foi a primeira apresentação relevante do Raul para o público, quando ele apresentou a canção no Festival Internacional da Canção, de 1972.
Com “Let Me SIng, Let Me Sing”, Raul Seixas revolucionou para sempre a história da música popular brasileira, trazendo a junção do rock’n roll com o baião, ritmo tradicional nordestino que se difundiu pelo país a partir dos anos 40, principalmente com o Rei do Baião, Luiz Gonzaga.
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Raul escutou muito baião durante sua infância, quando viajava constantemente de trem pelo sertão da Bahia ao lado de seu pai, que era engenheiro da estrada de ferro. Além disso, o baiano comparava Luiz Gonzaga com Elvis Presley, grande influência de Raul Seixas. Ele – inclusive – chamava Gonzagão de “Elvis do Nordeste”.
Raul também mistura as influências estrangeiras e brasileiras em “Let Me SIng, Let Me Sing” , ao compor parte da letra em português e outra parte em inglês. Isso por conta de sua parceira de composição – e sua esposa na época – Edith Wisner – não escreveu let me sing sozinho quem também assina essa canção é Edith Wisner, que era americana.
A tradução de “Let Me SIng, Let Me Sing” para o português é:
“Deixe-me cantar
Deixe-me cantar
Deixe-me cantar o meu Rock and Roll
Deixe-me cantar
Deixe-me dançar
Deixe-me cantar o meu Blues e me mandar”
E bem no começo da música, Raul canta o “Uah Bap Lu Bap”, inspirado na canção “Tutty Frutty” do cantor estadunidense Little Richard, sucesso doRockabilly dos anos 50.
Logo depois disso, vem um trecho da música com a letra cantada em inglês e – em seguida – a canção já vira um baião e passa a ser em português. Nesse trecho em português, Raul Seixas faz várias referências ao mundo da música.
“Eu vim rever a moça de Ipanema e vim dizer que o sonho terminou” – Aqui, a referência é a “Garota de Ipanema” de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, hino da Bossa Nova e “God”, de John Lennon, em que o ex-Beatle diz “The Dream Is Over”. Mais uma vez, uma fusão entre o brasileiro e o estrangeiro.
Raul Seixas faz isso porque aquela era uma época em que a música se dividia entre “americanizados”, ou os que copiavam uma moda estrangeira; o pessoal da MPB, que rejeitava um pouco aquilo que vinha dos Estados Unidos; e os Tropicalistas, que estavam no meio disso, tentando dar um novo direcionamento musical.
Então o que Raul está fazendo nessa música juntar o lado da MPB – representada pelo Baião – e o lado do rock and roll, juntando as duas coisas e dizendo que ele não quer trazer nenhuma verdade ele só quer cantar o “rockzinho antigo” dele, “que não tem perigo de assustar ninguém”.
Além disso, quando ele diz que “Dois e dois são cinco, né mais quatro não”, “Como 2 e 2” é uma canção do Caetano Veloso que foi gravada por Roberto Carlos.
Segundo a biografia escrita por Carlos Minuano, apesar de “Let Me Sing, Let Me Sing” não vencer o Festival Internacional da Canção, a apresentação projetou a criatividade meteórica do simpático roqueiro baiano, ainda desconhecido. “Como bem analisou Nelson Motta, a música ‘Let me Sing, Let me Sing’ uma mistura de rock com baião, já era uma afronta só por estar num festival de música brasileira e ainda mais numa época em que 70% do mercado fonográfico era dominado por canções estrangeiras.”.
Nelson Motta também declarou em um especial da Rede Globo sobre Raul Seixas, que no “Com essa música, o Raul encerrou essa discussão do rock versus música brasileira”.
Depois dessa apresentação no festival, Raul Seixas acabou sendo convidado para assinar um contrato de três anos com a gravadora (depois de muitos anos sonhando com isso), ele lançou os seus primeiros discos. Até Jackson do Pandeiro participa da gravação de“Let Me Sing, Let Me Sing”, em um compacto lançado por Raul em 1972.
- 6 – Medo da Chuva
O hit Medo da Chuva é mais um fruto da parceria entre Raul Seixas e Paulo Coelho.
Em sua letra, há uma espécie de manifesto contra a monogamia, como explica Júlio Ettore, em um vídeo no seu canal no YouTube, citando a relação entre Raul Seixas e sua primeira esposa, Edith:
“Os laços entre Raul e a Edith já estavam bem frágeis, tanto que Raul decidiu incluir no disco “Gita” a canção ‘Medo da Chuva”, uma composição em parceria com Paulo Coelho, tanto na letra quanto na melodia.
Aliás, é a única melodia que o Paulo compôs na vida, o que é algo notável já que ele não toca instrumento nenhum. “Medo da Chuva” é um manifesto contra a monogamia, é o Raul declarando que não quer ficar apenas com uma mulher.
O Paulo fez essa música num dia em que ele pegou muita chuva voltando para casa, aí ele pensou nesse verso: ‘Eu perdi o meu medo da chuva’ e ficou cantarolando. (…) Ele começou a pensar num assunto que o afligia especialmente naquele momento, em que viveu uma crise com Adalgisa: a fidelidade”.
Adalgisa era a esposa de Paulo Coelho naquela época e os dois também estavam em crise, como Raul e Edith. E Júlio Ettore continua contando a história de “Medo da Chuva”:
“(Paulo) misturou um pouco dos livros que andava lendo, como ‘O Casamento do Céu e do Inferno’ de William Blake, que o fazia desconstruir alguns mitos criados pela Igreja Católica, e também a liberdade de atos pregada por Crowley.
Crowley foi um cara que defendia magia sexual através de experiências com diversas pessoas, o que Paulo e Raul entendiam como uma defesa da poligamia.
Então, olha como as ideias com as quais o Raul teve contato nessa época de parceria com Paulo Coelho influenciaram até no casamento dele, fazendo com que ele acreditasse que deveria ter várias mulheres, quando no fundo não era isso que o Raul achava.
Enfim, se a Edith entendeu ou não o recado que o Raul passou com a canção “Medo da Chuva”, talvez nem o Raul deve ter visto, porque ela pegou a Simone (filha do casal) e se mandou certo dia, quando o Raul tinha dado mais uma de suas sumidas e, após alguns flagrantes de aventuras extraconjugais, Edith pegou a filha Simone, vendeu o apartamento do Leblon por 40 mil cruzeiros e se mudou para a casa dos pais em Salvador.
Em conversa com a mãe de Raul, ela contaria que estava a caminho dos EUA (sua terra natal) e que nunca mais regressaria.”
- 7 – Tente Outra Vez
A música Tente Outra Vez é uma das mais famosas da trajetória de Raul Seixas.
Ela marca a entrada de Marcelo Mota na vida de Raul Seixas. A letra é uma parceria da dupla e também de Paulo Coelho.
Marcelo era um importante divulgador da obra de Aleister Crowley, um cara proeminente nas sociedades esotéricas. Raul e Paulo, como já contamos, participaram dessas sociedades e foram aprendizes de Marcelo.
Paulo Coelho deu uma amenizada nessa letra, que antes fazia muitas referências a esses conceitos mais do ocultismo. O Paulo estava com trauma por causa da prisão, exílio e tortura, e não queria chamar atenção da censura.
Ele alterou algumas passagens, tipo ‘Tenha fé em Deus, Tenha fé na vida’, que antes era ‘Tenha fé em você’, mas foi considerado pelo Paulo como muito individualista.
Além de estar embutido nesta letra o trauma pós-tortura que Paulo e Raul sofreram e a necessidade de se reerguer, eles também estão falando sobre a situação do país e do mundo que era difícil por causa da crise do petróleo.
O barril triplicou de preço e o mundo inteiro sofreu, inclusive o Brasil, trazendo crise econômica e inflação nos anos seguintes.
O impacto que essa música tem na vida das pessoas é impressionante: pessoas que estavam perto do suicídio, desistiram por conta de “Tente Outra Vez”.
- 8 – Maluco Beleza
É exatamente por conta dessa música, que – ao longo dos anos – nós fomos cada vez mais nos referindo ao Raul Seixas como o “Maluco Beleza”! Até porque – por tudo que vimos até aqui, ele realmente era um “Maluco Beleza”.
Mas, na verdade, a letra de “Maluco Beleza” não foi inspirada na figura do Raul e sim no cara que escreveu a canção junto com o baiano.
O nome dele é Claudio Roberto, um compositor que foi adotado por Raul Seixas para ser seu parceiro de composições, depois que ele rompeu com Paulo Coelho, entre 1976 e 1977. O escritor inclusive declarou ao documentário “Raul Seixas O Início o Fim e o Meio”, de 2012, que essa é uma das duas músicas que ele adoraria ter escrito, mas não escreveu).
Cláudio acabou se tornando o maior parceiro de Raul em número de composições: eles escreveram juntos todo o disco “O Dia em que a Terra Parou”, de 1977, álbum em que “Maluco Beleza” foi lançada.
Cláudio Roberto era chamado de “Maluco Beleza”, por conta de seu comportamento desafiador das etiquetas da vida, como conta JB Medeiros no livro “Raul Seixas: Não diga que a canção está perdida”.
Eletinha um comportamento bastante ermitão – que é alguém que vive distante, isolado, longe da civilização – ou, como muitos chamam, alguém mais “bicho do mato”.
Quando “Maluco Beleza” estava para ser enviada às rádios, Raul – já imaginando que ela seria um sucesso – falou para o Cláudio que – se ele quisesse fugir, a hora era aquela – porque ele começaria a ser reconhecido e procurado como compositor do sucesso de “Maluco Beleza”. E foi isso que ele fez: se mudou para a bucólica cidade de Miguel Pereira, no interior do Estado do Rio de Janeiro.
Sobre a composição de “Maluco Beleza”, tudo começou com uma música que era do Cláudio Roberto, composta em português e mais introspectiva, e que sofreu duas mutações até virar “Maluco Beleza”.
Segundo o jornalista Carlos Minuano em seu livro “Raul Seixas por trás das canções”, Cláudio contava quepropôs ”roubar” a harmonia dessa sua música e fazer outra letra em cima. Daí, saiu a primeira versão, composta pelos dois, em inglês, e que levou o nome de “Bird Song” (“Canção do Pássaro”, em português).
Em português, a letra dizia algo como:
“Sempre que eu vejo aquele espaço todo no céu
Enquanto estamos nas cela
Não somos capazes de voar
Não há corrente que nos prenda ao chão
Vamos nos juntar aos outros pássaros
Vamos voar
Vamos ficar altos
Juntos e voar””
Pouco depois, a música já ganhou uma versão em português: segundo Carlos Minuano isso aconteceu no apartamento do Raul e segundo o JB Medeiros foi no estúdio, meia hora antes deles começarem a gravar a canção.
Essa nova letra – a versão final de “Maluco Beleza” – segundo Cláudio Roberto declarou ao livro do Carlos Minuano, não teve nenhuma inspiração filosófica específica. Ele diz, inclusive, que “‘Maluco Beleza’ não é baseada nem no baseado”, se referindo ao cigarro de maconha.
Acontece que o antropólogo e escritor peruano Carlos Castañeda – expoente da contracultura e do movimento hip, um cara cercado de mistério, que inspirou Paulo Coelho e foi lido por Cláudio Roberto – desenvolveu um conceito parecido com o que Cláudio e Raul trazem na música: o da “Loucura Controlada”.
Segundo Carlos Minuano, esse conceito é “um tipo de caminho do meio entre o mundo racional, lógico, e as esferas mais abstratas, como as experiências com substâncias que provocam efeitos psicodélicos, que Castañeda relata ter vivido com um xamã mexicano, na década de 60″.
Cláudio afirma que a letra de “Maluco Beleza” não tem uma relação direta com as obras de Carlos Castañeda e que não passa de uma coincidência eles estar lendo o livro do escritor peruano na mesma época em que compôs a música.
A letra também não é uma autobiografia sobre a vida de Cláudio Roberto. Como tudo o que se trata de Raul Seixas, a música traz várias interpretações sobre o que que é “Ficar Maluco Beleza”.
O artista baiano afirmou em uma entrevista de 1987, para a Rádio Globo, que “O ‘Maluco Beleza’ não é um maluco louco, envolvido com drogas, como o povo pensa não. O ‘Maluco Beleza’ é você estar iluminado, estar certo de você mesmo, certo de sua loucura, misturando lucinez com maluquices. Uma loucura que não é prejudicial, ao contrário, uma loucura que contagia, que pega.”.
Também tem uma interpretação muito comum de que – com a canção – Raul Seixas estaria homenageando Jesus Cristo ou Mahatma Gandhi – ser seres iluminados.
JB Medeiros conta em seu livro que – com sucesso dessa canção – Raul acabou sendo rotulado com essa história de “Maluco Beleza” e – mais do que isso – como ela ficou associada ao Movimento Hippie a outros movimentos alternativos, esse rótulo acabou se tornando um preconceito para diminuir o valor da obra do Raul:
“Como a canção mobilizava um exército de ‘Malucos Beleza’, crescia a necessidade dos ‘Guardiões do novo Bom Gosto’ de empurrar o raulseixismo para um gueto, circunscrevê-lo a uma legião de alternativos. Gostar de Raul era como assumir uma condição de decadência irremediável.”.
Ele também afirma que com o surgimento da internet e a circulação de informações sobre o Raul Seixas, esses preconceitos acabaram caindo.
Por mais que não tenha sido inspirado em Raul, o apelido de “Maluco Beleza” também lhe cai como uma luva!