Legado: as verdadeiras arquitetas da nossa MPB

Lívia Nolla
10:00 21.08.2024
Autor

Lívia Nolla

Cantora e Pesquisadora Musical
Música

Legado: as verdadeiras arquitetas da nossa MPB

Alaíde Costa, Dona Onete, Cátia de França e Anastácia, conheça a trajetória dessas quatro mulheres: as verdadeiras arquitetas da nossa MPB

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- 21.08.2024 - 10:00
Legado: as verdadeiras arquitetas da nossa MPB
Legado: as verdadeiras arquitetas da nossa MPB

Você já ouviu falar da importância histórica de Alaíde Costa, Dona Onete, Cátia de França e Anastácia

Se nunca ouviu, ou não ouviu o suficiente, pare tudo o que estiver fazendo agora e confira a seguir um panorama sobre a trajetória dessas quatro mulheres artistas, que são as verdadeiras arquitetas da nossa MPB!

Alaíde Costa

Alaíde Costa | Imagem: Divulgação / AlmapBBDO

Patrimônio vivo do nosso país, Alaíde Costa tem 88 anos de vida, muitos deles dedicados à imensa contribuição para a história da música popular brasileira.

Nascida e criada no subúrbio carioca do Méier, a cantora e compositora teve o reconhecimento tardio como a “Mãe da Bossa Nova“. Com um timbre inconfundível e singular, voz suave e segura, afinação perfeita e um repertório de extremo bom gosto, Alaíde é considerada uma das intérpretes mais talentosas da MPB.

A cantora teve seu talento observado pelo irmão mais novo, que a inscreveu em um concurso de calouros de um circo. Em seguida, ela passou a se apresentar em programas infantis de rádio, sendo eleita – aos 13 anos –  como a melhor cantora jovem no Sequência G3, da Rádio Tupi, apresentado por Paulo Gracindo. Também se destacou no programa A Raia Miúda, na Rádio Nacional. 

Aos 16 anos, Alaíde Costa trabalhava como babá de três crianças, quando sua empregadora insistiu que ela participasse do programa Calouros em Desfile, apresentado por Ary Barroso, na Rádio Tupi. Ela foi, interpretou Noturno em Tempo de Samba, de Custódio Mesquita e Evaldo Ruy, e recebeu nota máxima. Para a artista, este episódio foi definitivo para que seguisse a carreira de cantora. 

Alaíde iniciou formalmente sua vida profissional em 1955, atuando como crooner da casa noturna carioca Dancing Avenida. Um ano depois, gravou seu primeiro disco de 78 rpm, apresentando a sua composição Tens que Pagar, em parceria com Airton Amorim. No ano seguinte, gravou seu segundo compacto, pela Odeon, com o bolero Tarde Demais (Raul Sampaio e Hélio Costa), profissionalizando-se também no rádio e nos estúdios de gravação. 

Durante uma das gravações feitas nos estúdios da Odeon, a voz de Alaíde Costa chamou a atenção de João Gilberto, que pediu ao produtor Aloysio de Oliveira que a convidasse para ir a uma reunião de jovens artistas na zona sul do Rio, por achar que o estilo da cantora tinha a ver com a música que eles estavam fazendo. 

João e Alaíde não chegaram a se encontrar na gravadora nem na casa do pianista Bené Nunes, onde ela teve contato, pela primeira vez, com os compositores que estavam criando as músicas da Bossa Nova – movimento que nesta época ainda nem tinha esse nome. 

Em 1959, ao lado de Sylvia Telles, Billy Blanco, Ronaldo Bôscoli, Carlos Lyra e Roberto Menescal, Alaíde participoudo 1º Festival de Samba Session, no Rio de Janeiro, chamando muita atenção por seu talento. Ela empolgou a multidão com Chora Tua Tristeza (de Oscar Castro-Neves e Luvercy Fiorini), que – meses depois – se tornaria a primeira canção da Bossa Nova a estourar fora dos limites do movimento.

No mesmo ano, a artista lançou o seu primeiro LP, Gosto de Você, e em 1960 apresentou o segundo, Alaíde Canta Suavemente. O repertório dos discos traz uma predominância de artistas bossa-novistas, como Tom Jobim, João Donato, Vinícius de Moraes, Menescal, Lyra e Bôscoli. 

A partir do álbum seguinte, sem deixar de cantar bossa nova, Alaíde diversificou seu repertório, mantendo sempre sua marca, em que prevalecem canções românticas, de ritmo cadenciado.

Em 1963, a artista apresentou a primeira música exclusivamente de sua autoria – Afinal – faixa que batiza o álbum lançado naquele ano. Além das canções próprias e das parcerias com Tom, Vinicius e Johnny Alf, Alaíde ainda tem músicas criadas com Geraldo Vandré e Hermínio Bello de Carvalho

Em 1972, no antológico disco Clube da Esquina, a cantora divide com Milton Nascimento os vocais da música Me Deixa em Paz (de Monsueto Menezes e Airton Amorim).

Ao longo de mais de 60 anos de carreira, Alaíde Costa lançou mais de 20 discos .Outros de seus grandes sucessos são: Onde Está Você (de Oscar Castro-Neves e Luvercy Fiorini)e Sonho de um Carnaval (de Chico Buarque). 

Alaíde Costa nos anos 80 | Foto: Silvio Ferreira/VEJA

Ao longo da carreira também lançou discos em parceria com outros artistas – como o pianista João Carlos Assis Brasil, o guitarrista Toninho Horta e a cantora Claudette Soares – além de produzir álbuns exclusivamente dedicados às obras de Johnny Alf, Milton Nascimento, Hermínio Bello de Carvalho e Tom Jobim.

Em 2014, lançou Canções de Alaíde, totalmente dedicado aos trabalhos autorais. A artista compõe desde os 17 anos e, nas parcerias, assina as melodias, criadas ao piano.

Multifacetada, atuou também como atriz, recebendo em 2020 o prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante no Festival de Gramado por sua atuação no filme Todos os Mortos, dos diretores Caetano Gotardo e Marco Dutra. Nos anos 60, participou do espetáculo teatral Os Monstros, de Denoy de Oliveira com direção de Ruth Escobar, ao lado de Raul Cortez.

Por sua história e sua postura diante do racismo que enfrentou durante toda a sua vida e carreira, Alaíde Costa também é considerada uma pioneira na luta pela emancipação da mulher negra na profissão de cantora popular no Brasil.

No livro Chega de Saudade, Ruy Castro ressalta que, mesmo após ter adquirido relevância no cenário musical, “(…) Alaíde era perseguida pelo estigma que iria acompanhá-la por toda sua carreira: um mito entre os músicos e respeitada por todos os cantores, mas não tinha chances nas gravadoras”

Em entrevista à revista J.P, em 2020, a cantora afirmou: “Até hoje batalho a minha carreira, ainda existe preconceito. O tipo de música que escolhi cantar trouxe dificuldades. Muitas vezes, ouvi: Você tem que cantar uma coisinha mais alegre, samba. Mas não me sinto à vontade”, afirma. “Na época, não tinha consciência, só percebi anos mais tarde. Mas águas passadas não movem moinhos.” 

Em outra entrevista, concedida ao The New York Times, para um artigo publicado em 2020 sobre Johnny Alf, a cantora aponta que havia um racismo velado por parte de integrantes da bossa nova. O texto sustenta que a música de Johnny Alf já apresentava elementos que marcariam o gênero musical sete anos antes do lançamento do álbum Chega de Saudade, considerado o marco inicial bossa-novista, mas o artista não obteve reconhecimento público como pioneiro do movimento musical que ganharia o mundo. 

No artigo, Alaíde, cantora favorita de Alf, declara que nem ela nem ele percebiam a discriminação racial. “Quando o movimento começou, eu já era profissional. Era convidada para os encontros porque podia ajudar o movimento de alguma maneira” (…) Mas quando a bossa nova explodiu, senti que não era mais necessária”.

Em 2020, durante o isolamento social por conta da pandemia, Alaíde Costa fez a sua primeira apresentação com transmissão ao vivo pela internet, dedicada à obra de Johnny Alf. A live emocionou o rapper Emicida e o produtor musical Marcus Preto e Pupilo e eles decidiram produzir um novo álbum da cantora (2022) – O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim – com oito músicas inéditas, compostas especialmente para ela, por diversos nomes da MPB, como o próprio Emicida, Céu, Tim Bernardes, Guilherme Arantes, Erasmo Carlos, João Bosco, Ivan Lins, Joyce Moreno e Nando Reis (este último, em parceria com a própria Alaíde).

Alaíde Costa com Emicida e Marcus Preto | Foto: Enio Cesar/Divulgação

Hoje – aos 88 anos – Alaíde Costa vive um grande momento de sua carreira: no ano passado, ela foi convidada para se apresentar no Carnegie Hall, importante casa de shows de Nova York, no evento que celebrou os 60 anos de A Grande Noite – Bossa Nova.

Em 1962, a artista havia ficado de fora do grupo de artistas da Bossa Nova convidados para se apresentarem no local, introduzindo – naquele momento – a Bossa Nova, definitivamente, ao mundo inteiro.

Desta vez, ao lado de Roberto Menescal, Alaíde apresentou as canções Sabe Você (Carlos Lyra e Vinicius de Moraes) e Demais (Tom Jobim). Para ela, foi a reparação de uma injustiça histórica.

Neste ano de 2024, Alaíde Costa lançou o seu álbum mais recente: E o Tempo Agora Quer Voar, com composições dela em parceria com Emicida e Caetano Veloso (Foi Só Porque Você Não Quis); com Nando Reis (Suave Embarcação), além de uma parceria entre Marisa Monte e Carlinhos Brown (Moço), e composições de artistas da cena contemporânea, muito influenciados pela obra de Alaíde, como Rubel e Zé Manoel.

Dona Onete

Dona Onete | Foto: Divulgação

Outropatrimônio vivo da cultura brasileira e grande nome da nossa música popular e uma das maiores representantes da música do norte do país, Dona Onete, com seus 85 anos de vida, construiu uma trajetória fascinante, que revela a riqueza e a diversidade da Amazônia.

Com uma voz marcante e cheia de personalidade, se destaca não apenas pelo seu talento como cantora, mas também como compositora, poeta, professora, sindicalista e grande defensora da cultura amazônica. Sua música, uma mistura de ritmos amazônicos como o carimbó, o brega e a guitarrada, tem uma autenticidade que conquista todas as gerações.

Nascida em Cachoeira do Arari, no interior do estado do Pará, Iolanda da Silveira Gama, mais conhecida como Dona Onete, começou a cantar ainda na juventude, mas também só foi reconhecida nacionalmente muito tardiamente, quando já tinha mais de seis décadas de vida.

Apesar da grande injustiça e do apagamento – infelizmente tão comum à rica e expressiva cultura do norte do Brasil, por conta da xenofobia que vivemos dentro do próprio país – isso não impediu que a voz de Dona Onete conquistasse o país inteiro, passando a ser reconhecida como a Diva do Carimbó Chamegado.

Desde os quatro anos de idade, a artista se destacava ao participar de manifestações culturais populares do seu estado como as Pastorinhas, rodas de carimbó, siriá e banguê. Além disso, ela também se apresentava em shows de rua e no Bar Suburbana, no bairro de Fátima, em Belém.

Já na fase adulta, Dona Onete lecionou durante 25 anos a disciplina de História e Estudos Paraenses, fundou grupos de dança e música regional como o Grupo Folclórico Canarana, em 1989, que fazia apresentações de carimbó, benguê e lundu pelo estado do Pará, dançando suas composições autorais. 

Ela também atuou como Secretária de Cultura, entre 1993 e 1995, onde criou a Casa Ribeirinha, para resgatar manifestações culturais das populações tradicionais, e fortaleceu o lado artístico dos festivais do município relacionados com o extrativismo, como o Festival do Camarão e do Açaí, incluindo apresentações musicais, de grupos escolares e folclóricos.

Dona Onete também fez sua vida na militância, se destacando como sindicalista, sendo uma das fundadoras do Sindicato dos Trabalhadores e das Trabalhadoras em Educação Pública do Pará (Sintepp), integrante do Partido dos Trabalhadores e esteve na inauguração da Central Única dos Trabalhadores (CUT), em São Bernardo do Campo, em 1983. 

Dona Onete | Foto: Divulgação

Participou também de mobilizações por melhoras no ensino e nas condições de trabalho dos professores e pelo cultivo sustentável do açaí. 

Depois de aposentada, já aos 62 anos de idade, Dona Onete passou a cantar em casa sozinha, enquanto um grupo de Carimbó ensaiava do outro lado da rua. Ao a escutarem cantando, integrantes do grupo foram até a sua casa, mas acharam que ela era muito mais velha do que imaginava, e foram embora (esses daí não sabiam nada da vida!). 

Dois dias depois, um outro grupo foi perguntar à cantora se ela gostaria de ser uma das vocalistas da sua equipe e Dona Onete passou a participar do grupo folclórico Raízes do Cafezal.

Já no começo do anos 2000, ela começou a cantar no grupo pop com raízes regionais Coletivo Rádio Cipó, de Belém, passando de convidada ocasional para a porta-voz do movimento musical da região.

Assim, recebeu a oportunidade de interpretar no cinema uma cantora de carimbó no filme Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios, estrelado por Camila Pitanga. 

No entanto, foi por conta da relação com seu hoje guitarrista e produtor musical Pio Lobato, com quem nutre uma amizade sincera e uma parceria inestimável que já perdura por mais de uma década, que Dona Onete despontou nas emissoras de rádio e televisão em Belém do Pará. 

Pio Lobato foi quem abriu as portas para o reconhecimento dessa grande voz da música paraense por meio da profunda ligação que mantinha com a Fundação Paraense de Radiodifusão (FUNTELPA), por meio de suas pesquisas e experimentações acadêmicas. 

Sua contribuição foi de suma importância para inserir e reconhecer diversos artistas paraenses no cenário cultural, isso tudo graças ao Festival Terruá Pará, que abrigou grandes nomes da música paraense hoje reconhecidos. 

Como grande responsável pela pesquisa, divulgação e valorização da música local, Pio uniu forças ao único aparelho de propagação e produção de artistas locais na época, a Funtelpa, permitindo assim a vital ascensão da música paraense e levando a riqueza da cultura amazônica para além de suas fronteiras naturais.

A carreira musical de Dona Onete começou formalmente aos 73 anos, em 2012, com o lançamento de seu primeiro álbum, Feitiço Caboclo, que trouxe ao Brasil uma nova sonoridade, cheia de ancestralidade, utilizando parte das 300 músicas que a artista já havia escrito ao longo da vida. 

O álbum, que inclui sucessos como Jamburana e Proposta Indecente (ambas entraram para trilhas de novelas da Rede Globo), foi aclamado pela crítica e pelo público, marcando o início de uma nova fase em sua vida. A partir daí, produtoras estrangeiras começaram a se interessar pela cantora, em países como Portugal, França e Inglaterra, onde Dona Onete fez seus primeiros shows internacionais. 

No ano seguinte, em 2013, Dona Onete lançou sua biografia: Menina Onete – Travessias & Travessuras, escrita e editada pelo antropólogo Antônio Maria de Souza Santos e pela pedagoga Josivana de Castro Rodrigues, com o objetivo de resgatar sua infância e histórias de vida. 

Em 2016, lançou seu segundo álbum com músicas inéditas, Banzeiro, que a consolidou como uma das principais vozes da música brasileira contemporânea. A faixa-título foi um grande sucesso e se tornou um hino do carnaval em diversas cidades do Brasil. 

Dona Onete passou a se apresentar no Brasil e no exterior e, em 2017, foi capa da maior revista de world music no mundo, a Songlines, e a única artista brasileira a integrar o World Music Charts Europe Top 20, com a faixa Banzeiro

No mesmo ano, foi indicada ao Prêmio da Música Brasileira, como Melhor Cantora Regional, e nomeada para a Ordem do Mérito Cultural.

Em 2018, foi lançado o documentário Dona Onete – Flor da Lua, do diretor Vladimir Cunha, e – em 2019 – seu terceiro disco, Rebujo, eleito um dos 25 melhores álbuns brasileiros do primeiro semestre do ano, pela Associação Paulista de Críticos de Arte.

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Ainda no mesmo ano, para celebrar a cultura paraense, a cantora participou do festival Rock in Rio juntamente com outros conterrâneos como Fafá de Belém, Gaby Amarantos, Lucas Estrela, Jaloo e Manoel Cordeiro. 

Em 2021, Dona Onete participou da faixa Última Lágrima (composta por ela, Gaby Amarantos e Renato Rosas), ao lado da Elza Soares e Alcione, no álbum Purakê, da cantora paraense Gaby Amarantos, sua segunda colaboração com a conterrânea, sendo a primeira a faixa Mestiça, do álbum Treme (2012). 

Em 2023, Dona Onete foi homenageada com a exposição Ocupação Dona Onete, em cartaz no Itaú Cultural, na capital paulista, que contou com 120 itens, entre fotos, vídeos, músicas, manuscritos e depoimentos. 

Seu álbum mais recente – Bagaceira – é de 2024 e transita por gêneros como banguê, brega e carimbó, com 10 músicas inéditas, todas compostas por Dona Onete.

Sua música não apenas resgata as tradições amazônicas, mas também as reinventa, mostrando que Dona Onete é uma artista que dialoga com o passado e o presente, influenciando e sendo influenciada pelas novas gerações.

A discografia de Dona Onete é um testemunho de sua importância cultural, trazendo toda a diversidade musical da região norte do país e celebrando suas tradições locais.

Dona Onete é uma inspiração para muitos artistas mais jovens, que veem nela uma referência de resistência e autenticidade. Sua obra é um reflexo de sua vida: rica, diversa e profundamente conectada com suas raízes. A artista mostra que a idade não é barreira para o sucesso e que sempre é tempo de brilhar.

Cátia de França

Cátia de França | Foto: Divulgação/José de Holanda

Cátia de França é outra artista multifacetada – cantora, compositora, instrumentista, escritora, sonoplasta e diretora musical – que, ao longo de sua carreira, tem contribuído de forma significativa para a música popular brasileira, e que ecoa a nossa cultura em sua história e sua voz.

Nascida Catarina Maria de França Carneiro, em João Pessoa, na Paraíba, Cátia de França descreve o ambiente familiar como “pobre, mas ilustrado: faltava manteiga, mas tinha livro”. Filha única, foi alfabetizada por meio de canções pela mãe, Adélia de França, primeira professora negra do estado da Paraíba.

Começou a estudar piano aos quatro anos de idade, e – na adolescência – aprendeu piano clássico, violão, flauta, sanfona e percussão, enveredando definitivamente pela música popular. Durante seus anos de residência no interior de Pernambuco, para onde se mudou aos 16 anos, fez teatro, deu aulas de música e tocou em casas noturnas.

Cátia começou a cantar desde muito jovem, encantando a todos com sua voz poderosa, timbre inconfundível – marcado pela força e pela delicadeza ao mesmo tempo – interpretação única e afinação impecável.

Seu talento foi reconhecido cedo, mas foi apenas na fase adulta que ela conseguiu o reconhecimento que merece, tornando-se uma referência e uma das intérpretes mais respeitadas e admiradas da música brasileira, não só para a sua geração, mas também para as novas vozes da MPB.

Na década de 1960, a cantora participou de festivais de música popular e também viajou para Portugal e Espanha com um grupo folclórico da Fundação Artístico-Cultural Manuel Bandeira, do qual participava.

De volta ao Brasil, no início dos anos 1970 mudou-se para o Rio de Janeiro, onde integrou as bandas de outros músicos nordestinos, como Zé Ramalho, Elba Ramalho, Amelinha e Sivuca. Mais tarde, foi parceira de palco de Jackson do Pandeiro durante a primeira versão do Projeto Pixinguinha, em 1980.

Cátia de França | Foto: Divulgação

Apesar de ganhar certa projeção no cenário musical brasileiro nos anos 1970, juntamente com outros cantores e compositores nordestinos, Cátia de França nunca aceitou ingerências das gravadoras no seu trabalho, no sentido de torná-lo mais comercial. Portanto, sua produção artística foi consumida por um público mais restrito, que não se prende às convenções culturais dos grandes centros urbanos brasileiros.

Em 1979, gravou seu primeiro álbum, 20 Palavras ao Redor do Sol, com participações de nomes como Sivuca, Lulu Santos e Bezerra da Silva, que é considerado pela própria cantora como um precursor do que Chico Science faria, 15 anos depois, ao mesclar música nordestina com rock. 

O icônico álbum, cujo título é inspirado em uma poesia de João Cabral de Melo Neto, inclui composições de sua autoria, como Coito das Araras, eincorpora referências literárias e culturais diversas,inclusive do folclore cigano da Bulgária, na canção Kukukaya (Jogo da Asa da Bruxa).  

Em seguida, vieram os álbuns Estilhaços (1980); Feliz Demais (1985) e Olinda (1985), com participação da Banda Azymuth.

Em 1990, Cátia de França voltou a residir na Paraíba, passando a integrar a ONG e Projeto Malagueta, de divulgação do acervo cultural do estado. Em 2005, fixou residência em Lumiar, distrito de Nova Friburgo, Rio de Janeiro. Em fevereiro de 2018, foi inaugurado o Centro Cultural Cátia de França, em São Pedro da Serra, outro distrito de Nova Friburgo.

Em mais de 40 anos de carreira fonográfica, Cátia de França lançou mais os seguintes álbuns: Avatar (1998, com participações de Chico César e Xangai); Cátia de França canta Pedro Osmar (2005); No Bagaço da Cana / Um Brasil Adormecido (2012) e Hóspede da Natureza (2016), inspirado na obra do escritor estadunidense Henry David Thoreau e com uma musicalidade que transita do reggae ao blues, passando por bossa nova, rock e bumba meu boi.

Recentemente, em 2024, ela lançou seu mais recente álbum, No Rastro de Catarina, que traduz a sua relevância para a música brasileira. Um disco que une o passado e o presente, que resgata memórias e perspectivas ao longo de 77 anos de vida e 12 faixas inéditas. Suas composições têm sido redescobertas pelas novas gerações.

Sua música tem como fonte a literatura, fazendo referências à obra de Guimarães Rosa, José Lins do Rego, Manoel de Barros, além de João Cabral de Melo Neto, mas que também é definida pela própria Cátia como “popular mundial”, por incluir referências que vão desde os nordestinos Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, até Elvis Presley, Beatles e o mineiro Clube da Esquina.

Cátia de França é uma referência importante para as novas gerações de artistas, especialmente para aquelas que buscam manter viva a tradição da música de raiz. Sua obra é um reflexo de sua vida, dedicada à valorização das culturas populares brasileiras e ao combate ao preconceito racial e social.

Em 2023, foi uma das dez personalidades do cenário artístico brasileiro, homenageadas com o Prêmio Milú Villela – Itaú Cultural 35 Anos.

Hoje, aos 77 anos e com meio século de carreira, Cátia de França segue sendo uma artista relevante e inovadora no cenário musical atual e seu trabalho inspira e influencia novos artistas, garantindo que sua contribuição para a música popular brasileira será lembrada por muitas gerações. 

Anastácia

Anastácia, a Rainha do Forró | Foto: Divulgação

Conhecida como Rainha do Forró e Guardiã da Tradição Nordestina, Anastácia é uma das mais respeitadas e influentes cantoras e compositoras do país. Com uma carreira que abrange mais de seis décadas, ela construiu um legado que reverberará para sempre na música popular brasileira.

Nascida em Recife, Pernambuco, como o nome de Lucinete Ferreira, desde a infância mostrou um talento excepcional para a música. Ainda adolescente, começou a cantar em programas de rádio e rapidamente se destacou pela sua voz forte e pelo domínio dos ritmos nordestinos, especialmente o forró.

Anastácia não é apenas uma intérprete extraordinária, mas também uma compositora prolífica – uma das maiores da história da música brasileira – com mais de 800 músicas registradas em seu nome, mais de 250 delas em parceria com o compositor e sanfoneiro pernambucano Dominguinhos, com quem Anastácia foi casada e formou uma das parcerias mais frutíferas da MPB. 

Juntos, eles criaram clássicos como: Eu Só Quero Um Xodó; De Amor eu Morrerei; Sanfona Sentida e Tenho Sede, e foram gravados por grande parte dos artistas brasileiros de gerações e estilos diversos.

No começo da década de 1950, Anastácia começou a trabalhar, ainda criança, como cantora, acompanhada por uma prima Julieta, pois a mãe não podia se ausentar da casa. 

Aos 14 anos, foi convidada para se apresentar na principal emissora do Recife, a Rádio Jornal do Commercio e sua estreia foi acompanhada por Hermeto Pascoal. Lá, interpretava canções do sul do país, e mais tarde, principalmente, as versões gravadas por Celly Campello, cantora paulista. 

Foi contratada a seguir para integrar o casting da rádio e, graças ao sucesso ali alcançado, passou a realizar muitos shows nos circos, então um dos principais meios de espetáculo nas cidades nordestinas. 

Anastácia ficou na rádio até até 1960, ano em que mudou-se para São Paulo e mudou seu repertório para o gênero nordestino. Nesta época ela já compunha e realizava apresentações pelas cidades interioranas de Pernambuco.

Nessa mesma época, ganhou do produtor, cantor e compositor Palmeira, então diretor da gravadora Chantecler, o nome artístico de Anastácia, por inspiração de um filme com o mesmo nome que fazia bastante sucesso na época. 

Anastácia | Imagem: Reprodução

Ainda em 1960, gravou seu primeiro compacto pela Chantecler, e – nos anos que se seguiram – lançou mais alguns compactos pela gravadora. 

Em 1963, o cantor Noite Ilustrada gravou a primeira composição de Anastácia, Conselho de Amigo, feita em parceria com Italúcia

A cantora passou, em seguida, para a gravadora Continental, onde gravou seu LP de estreia Anastácia no Torrado (1964), que trouxe ao público a energia e a autenticidade da música nordestina. 

Ao longo de sua carreira, sua discografia inclui álbuns marcantes como Xodó de Anastácia (1972) e Rainha do Forró (1999). Esses trabalhos destacam sua capacidade de renovar o forró sem perder as raízes, mantendo viva a tradição enquanto dialoga com o contemporâneo.

Ainda em meados dos anos 1960, Anastácia conheceu Dominguinhos, com quem se casou e formou uma parceria musical, que durou de 1967 a 1976, e que ajudou a popularizar o forró no sudeste do país. 

Com sua voz inconfundível e uma presença de palco cativante, Anastácia ajudou a difundir a música nordestina e a abrir portas para muitos outros artistas do gênero.

Anastácia é uma referência indiscutível para as novas gerações de músicos, especialmente aqueles que buscam preservar e inovar dentro da música regional. Com mais de 30 álbuns lançados, sua obra não só reflete a riqueza cultural do nordeste, mas também sua paixão pela música e pela cultura popular.

Nos últimos anos, Anastácia continua a produzir e a lançar novas canções, mostrando que sua criatividade e energia estão longe de se esgotar: em 2015, com o disco 60 Anos de Forró e MPB, foi indicada ao Prêmio de Música Brasileira, na categoria Melhor Cantora de Música Regional

Em 2018, aos 77 anos, lançou o primeiro DVD da carreira, Daquele Jeito, sintetizando seu estilo e com diversas participações especiais, entre elas: Zeca Baleiro, Fagner, Fafá de Belém, Trio Xamego, Dantas do Forró e Niltinho Ribeiro. O álbum obteve sucesso perante a crítica e foi indicado ao prêmio Grammy Latino de Melhor Álbum de Música de Raízes em Língua Portuguesa.

Em 2021, ano em que completou 80 anos, Anastácia foi a primeira homenageada do Troféu Tradições, prêmio entregue pela União Brasileira dos Compositores (UBC). A homenagem contou com um show da compositora, no qual ela celebrou sua trajetória musical, com participações especiais de Zeca Baleiro, Mariana Aydar e Mestrinho tocando seus principais sucessos.

No mesmo ano, lançou – em parceria com Fi Bueno – seu mais recente álbum  – Identidades –  com participação de Zeca Baleiro em Estrela Cadente (Anastácia e Fi Bueno) e de Gilberto Gil em Interestelar (Anastácia e Fi Bueno), single que foi lançado com um mini-doc com a participação dos artistas e de Guto Graça Mello, produtor do álbum.

Hoje, aos 83 anos, Anastácia é celebrada como uma das grandes mulheres da música brasileira, uma artista que não só ajudou a moldar o forró como o conhecemos, mas também a mantê-lo vivo e pulsante. Sua influência pode ser sentida em todo o Brasil, e sua música continua a inspirar e a emocionar novas gerações de artistas e fãs.

por Lívia Nolla

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