História da música “Cálice”, de Chico Buarque e Gilberto Gil

Lívia Nolla
00:35 22.05.2025
Autor

Lívia Nolla

Cantora e Pesquisadora Musical
Curiosidades

História da música “Cálice”, de Chico Buarque e Gilberto Gil

Uma das músicas mais significativas dos tempos duros de ditadura militar que foi barrada pela censura

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- 22.05.2025 - 00:35
História da música “Cálice”, de Chico Buarque e Gilberto Gil
Gilberto Gil e Chico Buarque | Imagem: Reprodução

Um dos momentos mais catárticos do show da última turnê do baiano Gilberto Gil – Tempo Rei – é o momento em que seu amigo e parceiro, Chico Buarque, aparece em uma projeção dos telões dando um depoimento sobre a história da música “Cálice”.

Gil pára para escutar Chico junto com a plateia presente, olhando-o de frente, mas – em dado momento da história – fica difícil de escutar Chico Buarque, tamanha é a comoção do público. 

Em meio a aplausos e gritos coletivos de “Sem Anistia!”, a história da música “Cálice” arrepia cada um que consegue entender a profundidade e importância do que Gil e Chico tratam na canção. 

“Nós nos conhecíamos já há bastante tempo, mas nunca tínhamos escrito uma canção em parceria. Ele praticamente chegou em casa com a música toda pronta: esse refrão e a ideia do que ele queria. Essa música tem alguma coisa de angustiante, porque ela retrata bastante aquele momento político do Brasil. 

E o “Cálice” refere-se – evidentemente à censura: “Cale-se”, do verbo “calar”. E essa música acabou sendo censurada. É uma música que fala de censura e acabou sendo censurada.”, conta Chico no depoimento.

É nessa hora que o público começa a se manifestar, entoando em coro: “Sem Anistia! Sem Anistia!”. E Chico continua:

“Aí começaram a desligar os microfones. Desligaram o do Gil, desligaram o meu, foram desligando um a um. Era esse clima que a gente vivia neste período da ditadura, a partir do AI5. 

Eu gosto quando eu vejo o pessoal bem mais novo, o pessoal que não viveu esse tempo, que fiquem atentos ao que aconteceu, ao que pode se repetir. Essa história está sendo varrida pra debaixo do tapete há muito tempo.”

Mesmo 52 anos depois de “Cálice” ter sido composta, ela segue fazendo muito sentido e sendo imensamente necessária, principalmente nos últimos tempos.

Gilberto Gil e Chico Buarque compuseram “Cálice” em 1973, depois dos dois terem voltado do exílio por conta da perseguição que sofreram do regime militar. Gil foi preso em 1969 – depois de um show, junto com Caetano Veloso – e obrigado a se exilar em Londres. Chico se auto-exilou em Roma com a família. 

Gilberto Gil complementa essa história no livro “Todas as Letras” – organizado por Carlos Rennó e que reúne a maioria das canções escritas pelo artista baiano. Ele conta sobre a história de “Cálice“, composta em 1973, para ser apresentada no festival “Phono 73″, da gravadora Polygram:

“A Polygram queria fazer um grande evento com todos os seus artistas no formato de encontros, e foi dada a mim e ao Chico a tarefa de compor e cantar uma música em dupla. Era semana santa e nós marcamos um encontro no sábado no apartamento dele, na Rodrigo de Freitas (a lagoa referida, aliás, por ele na letra). 

Eu pensei em levar alguma proposta e, um dia antes, no fim da tarde, me sentei no tatame, onde eu dormia na época, e me pus a esvaziar os pensamentos circulantes para me concentrar. 

Como era Sexta-feira da Paixão, a ideia do calvário e do cálice de Cristo me seduziu, e eu compus o refrão incorporando o pedido de Jesus no momento da agonia. Em seguida, escrevi a primeira estrofe, que eu comecei me lembrando de uma bebida amarga chamada Fernet, italiana, de que o Chico gostava e que ele me oferecia sempre que eu ia a sua casa. 

Veja também:

No sábado não foi diferente: ele me trouxe um pouco da bebida, e eu já lhe mostrei o que tinha feito. Quando, cantando o refrão, eu cheguei ao ‘cálice’, no ato ele percebeu a ambiguidade que a palavra, cantada, adquiria, e a associou com ‘cale-se’, introduzindo na canção o sentido da censura. 

Depois, como eu tinha trazido só o refrão ‘melodizado’, trabalhamos na musicalização da estrofe a partir de ideias que ele apresentou. E combinamos um novo encontro. Ele acabou fazendo outras duas estrofes e eu mais uma, quatro no total, todas em oito decassílabos. 

Dois ou três dias depois nos revimos e definimos a sequência. Eu achei que devíamos intercalar nossas estrofes, porque elas não apresentavam um encadeamento linear entre si. Ele concordou, e a ordem ficou esta: a primeira, minha, a segunda, dele; a terceira, minha, e a última, dele. 

Na terceira, o quarto verso e os dois finais já foram influenciados pela ideia do Chico de usar o tema do silêncio. O termo, aliás, já aparecia na outra estrofe minha, anterior: ‘silêncio na cidade não se escuta’, quer dizer: no barulho da cidade, não é possível escutar o silêncio; quer dizer: não adianta querer silêncio porque não há silêncio, ou seja: não há censura, a censura é uma quimera; além do mais, ‘mesmo calada a boca, resta o peito’ e ‘mesmo calado o peito, resta a cuca’: se cortam uma coisa, aparece outra. 

Aí, no dia em que nós fomos apresentar a música no show, desligaram o microfone, logo depois de termos começado a cantá-la. Tenho a impressão de que ela tinha sido apresentada à censura, tendo-nos sido recomendado que não a cantássemos, mas nós fizemos uma desobediência civil e quisemos cantá-la.”.

Aqui neste vídeo, tem o áudio deste exato dia em que Chico e Gil desafiaram a censura, com uma música que fala sobre censura, e foram censurados.

No áudio, eles fazem improvisos vocais no lugar da letra, cantando somente o refrão: “Cálice!”.

Tem uma hora que Chico Buarque insere um “arroz à grega” neste improviso, mas que de improviso não tem nada, foi muito bem pensado: nesta época, os veículos inseriam receitas culinárias no lugar das matérias e artigos que haviam sido censurados.

Por conta da censura, “Cálice” foi lançada somente em 1978, no álbum “Chico Buarque”, interpretada lindamente por Chico eMilton Nascimento. 

Em seguida, no álbum “Álibi”, de 1978, Maria Bethâniatambém gravou a canção.

Gil somente gravou “Cálice” em 2011, no álbum ao vivo de duetos “Gil + 10 – Gilberto Gil Convida”, em gravação feita também com Milton Nascimento.

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colunista

Lívia Nolla

Lívia Nolla é cantora, apresentadora e pesquisadora musical

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