Especial: Clarice Lispector e suas entrevistas; confira

Lívia Nolla
06:00 17.10.2024
Autor

Lívia Nolla

Cantora e Pesquisadora Musical
Arte e cultura

Especial: Clarice Lispector e suas entrevistas; confira

Saiba como as conversas com a escritora brasileira fazia a gente entender mais a sua literatura e os pensamentos que a rodeavam, gerando reflexões até hoje

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- 17.10.2024 - 06:00
Especial: Clarice Lispector e suas entrevistas; confira
A escritora Clarice Lispector | Imagem: Reprodução

A escritora Clarice Lispector é uma das vozes mais importantes e mais icônicas da literatura brasileira de todos os tempos. Com sua escrita profundamente reflexiva e singular, ela deixou um legado indiscutível na história da cultura brasileira.

Suas entrevistas, no entanto, são um capítulo à parte, revelando nuances de sua forte personalidade e de suas intenções literárias. Para Clarice, as entrevistas eram uma oportunidade não apenas de falar sobre suas obras, mas também de compartilhar pensamentos íntimos sobre a vida, a arte e o processo criativo. 

Até os dias atuais, trechos antológicos dessas entrevistas e reflexões circulam nas redes sociais, ressurgindo em forma de citações que, muitas vezes, refletem as angústias e os questionamentos universais que permeiam o trabalho de Clarice Lispector e também a vida de muitos de seus leitores. Em cada fala, encontramos a mesma força poética que habita suas páginas.

É importante entender que as entrevistas desempenham um papel importante na divulgação das ideias de qualquer autor, permitindo que o público tenha uma visão mais direta de suas reflexões. No caso de Clarice, elas servem como um complemento essencial à leitura de suas obras, expandindo o entendimento do que estava por trás de sua escrita, de sua visão de mundo e de seu silêncio, muitas vezes mais eloquente do que suas palavras. 

Nesta matéria, vamos explorar algumas de suas entrevistas mais marcantes e como elas continuam a ecoar no imaginário cultural brasileiro.

Leia também a nossa matéria Livros de Clarice Lispector que você precisa conhecer, e saiba mais sobre a vida e a obra da autora.

Clarice Lispector | Foto Reprodução/ Acervo IMS

As principais entrevistas de Clarice Lispector e seus temas centrais

As entrevistas de Clarice Lispector revelam aspectos fascinantes de sua personalidade e pensamentos, muitas vezes fornecendo respostas para as questões levantadas em seus livros. Embora ela mesma tivesse certa resistência em ser analisada ou colocada em um pedestal, suas conversas públicas ajudam a compreender suas preocupações literárias e filosóficas. Em cada entrevista, encontramos uma mulher que, mesmo com toda sua fama, mantinha um ar de mistério e introspecção.

1 – Entrevista à TV Cultura (1977)

Pouco antes de sua morte, em 1977, Clarice Lispector concedeu uma entrevista ao jornalista Júlio Lerner – no Programa Panorama, da TV Cultura – que se tornou um dos registros mais emocionantes e emblemáticos de sua vida. 

Fumando durante grande parte do tempo em que é gravada, sentada em uma poltrona ao lado de um grande cinzeiro, ela fala com uma franqueza impressionante sobre o papel da escrita em sua vida e como a criação era uma forma de autoexpressão, de sobrevivência e, ao mesmo tempo, de mistério. 

Na conversa, Clarice fala que sua produção literária na adolescência era “caótica, intensa e inteiramente fora da realidade da vida”: “Já escrevia contos para revistas e jornais (…) eu sou tímida e ousada ao mesmo tempo (…) chegava lá e dizia ‘eu tenho um conto, o senhor quer publicar’?”, revela.

Ela continua dizendo que teve uma vez em que o jornalista, poeta, biógrafo, historiador e teatrólogo Raimundo Magalhães Jr. olhou os seus escritos e perguntou para ela: “Você copiou isso de quem?”.

Bastante séria e franca, quando questionada sobre seu processo criativo, Clarice diz que sua produção literária tem períodos de produzir intensamente e outros períodos de hiato, em que a vida fica “intolerável”. Ela diz que “vegeta” quando esses hiatos são longos, ou então – para se salvar – lança logo outra coisa.

Quando o jornalista pergunta quando exatamente ela resolveu assumir a carreira profissional de escritora, ela comenta: “Eu nunca assumi. Eu não sou uma profissional, eu só escrevo quando eu quero, sou amadora e faço questão de ser amadora. Profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo de escrever ou em relação ao outro. Agora eu faço questão de não ser uma profissional, para manter minha liberdade”.

Essa entrevista também reflete o Brasil de uma época em que a liberdade de expressão era vigiada e restrita, mas Clarice conseguia, de maneira sutil e poética, expressar suas visões de mundo.

Clarice Lispector pediu que essa entrevista fosse publicada apenas depois de sua morte, o que aconteceu 10 meses depois, em dezembro do mesmo ano.

Outro trecho impactante dessa entrevista, é quando questionada sobre a diferença de escrever para adultos e para crianças:

“Quando eu me comunico com criança, é fácil, porque eu sou muito maternal. Quando eu me comunico com adultos, eu estou me comunicando com o mais secreto de mim mesma, aí é difícil.”

Ela segue dizendo que “O adulto é triste e solitário, a criança tem a fantasia solta.”, mas quando o repórter pergunta em que momento da vida o ser humano vai se tornando triste e solitário, ela diz que isso é segredo e prefere não responder, mas segue afirmando: “Eu não sou solitária, tenho muitos amigos. Eu só estou triste porque estou cansada, mas no geral eu sou alegre.”. 

Outras frases antológica dessa entrevista de Clarice Lispector são: 

“Eu acho que quando eu não escrevo, eu estou morta.”

“Eu escrevo simples, eu não enfeito.”

“Eu penso – às vezes – que eu estou isolada, e quando eu vejo, tem universitários, gente muito jovem, que está completamente ao meu lado. Isso me espanta e é gratificante.”

A escritora também se coloca como alguém muito preocupada com questões sociais e com o ser humano, quando cita um conto que escreveu e pelo qual tem muito carinho – O Mineirinho – sobre um criminoso que foi morto pela polícia com 13 tiros, quando uma só bastava, e isso a revoltou muito.

“Eu escrevo sem esperança de o que eu escrevo altere qualquer coisa.”

2 – Entrevista ao Museu da Imagem e do Som (1976)

Esta é uma das entrevistas mais antológicas de Clarice Lispector, realizada pelo Museu da Imagem e do Som (MIS) em 1976, onde a escritora se depara com questões sobre sua vida e obra. 

Até 2023 ela estava disponível somente por escrito, no acervo do MIS, mas a revista americana New Yorker disponibilizou a conversa em áudio em fevereiro do ano passado.

O tema central é o ser humano e sua complexidade, um tópico recorrente em suas criações literárias. Clarice, em tom reflexivo, aborda o processo de autoconhecimento e a busca incessante por sentido na vida. 

Neste encontro, ela tenta desmistificar a ideia de ser uma escritora elitista, afirmando que escrevia para sobreviver, e que, acima de tudo, sua preocupação era entender o mistério da existência humana.

Essa entrevista aconteceu em um contexto de censura e repressão no Brasil, e Clarice, embora conhecida por evitar debates políticos, não deixou de transparecer sua inquietação com o momento histórico. 

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Suas falas revelam uma escritora que sentia profundamente as dores do mundo, ainda que sua obra fosse mais focada nas emoções e na subjetividade do que em questões externas.

Numa conversa bem mais solta do que a da entrevista anterior, Clarice conta da sua infância pobre, da família e da chegada ao Brasil: seus pais pararam em uma aldeia na Ucrânia, durante uma fuga, para ela nascer. “Cheguei ao Brasil com dois meses de idade. Me chamar de estrangeira é bobagem.”

A escritora também diz que as pessoas a confundiam com uma estrangeira por causa do sotaque, mas explica que a forma em que ela fala o  ‘R’ não é, mas língua presa.

Ela contou também das primeiras histórias que escreveu: os textos eram enviados para o jornal Diário de Pernambuco (ela morou no Recife até os 12 anos), para a seção infantil, publicada às quintas-feiras: “Eu me cansei de enviar minhas histórias, mas elas nunca as publicaram, e eu sabia por quê. Porque os outros começavam assim: ‘Era uma vez, etc, etc’. E os meus eram sensações.” 

Na entrevista, Clarice também falou sobre a sua produção, como o primeiro livro, Perto do Coração Selvagem, A Cidade Sitiada – que ela considerou o seu livro mais denso – e A Paixão Segundo G.H. Também falou sobre as traduções de suas obras e de como lidava com seus textos publicados:

“Eu não releio. Isso me dá nauseas. Quando está publicado, é como um livro morto. Eu não quero mais ouvir falar dele. Eu leio, eu acho estranho, eu acho ruim, e é por isso que eu não leio. Eu também não leio traduções que eles fazem dos meus livros para não me irritar.”

3 – Entrevista ao Jornal O Globo (1964)

Clarice Lispector | Foto: Editora Rocco/Divulgação

Clarice Lispector conversou com o Jornal O Globo em março de 1964, quando a autora já estava prestes a lançar um de seus livros mais importantes: A Paixão Segundo G.H.

A entrevista foi importante para o público conhecer um pouco mais sobre aquela escritora para alguns ainda enigmática, que já havia impressionado com obras como Perto do Coração Selvagem (1943); Laços de Família (1960) e A Maçã no Escuro (1961).

Confira algumas respostas marcantes de Clarice ao jornal O Globo: 

Qual o seu julgamento sobre os livros que escreveu? Toda a minha obra é um grande equívoco. Caí na moda; com o tempo, passa a moda. O que, para mim, não fará a menor diferença.

Está satisfeita com a vida que leva ou gostaria de viver de modo diverso? De modo diverso. Mas completamente diverso. Só que ainda não sei como gostaria de viver. Não achei a fórmula ideal. 

Que coisas gostaria de ter realizado e não conseguiu? Quase tudo.

Qual o seu maior defeito? E a maior virtude? Não sei qual o maior, mas a impaciência é o que mais me prejudica. Quanto à maior virtude, acho que é gostar dos outros, se é que isso é virtude. Pelo menos, é o que me traz maiores alegrias.

Em princípio, a humanidade é boa ou má? É boa e má. 

O dinheiro ajuda a ser feliz? Mas é claro! Basta ver quanta gente morre de fome. 

A mulher solteira pode libertar-se da frustração? Depende da formação e da personalidade da mulher. 

A burrice é um mal incurável? É sim, mas pode-se atingir a inteligência da “pessoa burra” através do coração.

A filosofia ajuda a compreender melhor a vida? Ajuda, a menos que também desespere 

Gostaria de ser outra pessoa ou de viver em outra época? Gostaria de ser outra pessoa. A época podia ser a mesma.

O legado de Clarice Lispector nas entrevistas

Clarice Lispector | Foto: José Castello

As entrevistas de Clarice Lispector são um tesouro que vai além de aumentar ainda mais a importância de sua obra literária. Elas oferecem uma compreensão mais profunda de sua mente criativa e das questões que a mobilizavam, servindo como fonte de inspiração para muitos escritores que vieram depois dela. 

Clarice, com sua forma única de enxergar o mundo, influenciou gerações de autores, que encontraram em suas palavras e em sua postura uma referência para abordar temas como identidade, solidão e a busca por sentido. Suas ideias, muitas vezes fragmentadas e enigmáticas, continuam a ressoar na literatura contemporânea, sendo revisitadas por escritores e estudiosos que veem em Clarice Lispector um farol para explorar as complexidades do ser humano.

Além disso, suas entrevistas contribuíram para consolidar seu lugar no panteão da literatura brasileira. O modo como a escritora falava – às vezes desconcertante, outras vezes profundamente afetuoso – ajudou a criar a imagem de uma figura enigmática, quase mítica, o que apenas ampliou sua influência sobre leitores e críticos. 

Nas redes sociais, é comum encontrarmos trechos de suas falas que permanecem atuais e universais, mostrando a relevância perene de suas reflexões para a cultura brasileira.

Clarice Lispector segue sendo uma referência não só por sua literatura, mas também por suas entrevistas, que, assim como seus livros, continuam a nos desafiar, encantar e provocar novas maneiras de ver o mundo e a nós mesmos.

Confira também: 10 poemas de Clarice Lispector que vão te emocionar

por Lívia Nolla

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