Livros de Clarice Lispector que você precisa conhecer
Livros de Clarice Lispector que você precisa conhecer
Site da Novabrasil listou desde as obras mais famosas até aquelas menos exploradas; confira aqui o nosso especial
Clarice Lispector é uma das maiores e mais importantes escritoras da história do Brasil. Em sua obra, existem livros de Clarice Lispector que já são aclamadíssimos e super conhecidos no país inteiro – e no mundo! – e outros não tão famosos, mas tão interessantes quanto, e que você precisa conhecer.
Trouxemos uma lista que conta com 10 livros de Clarice Lispector que merecem toda a sua atenção. Mas, primeiro, vamos entender como tudo começou!
Quem foi Clarice Lispector?
Considerada um dos maiores nomes da literatura brasileira, Clarice Lispector estreou em 1943, com o premiado romance Perto do Coração Selvagem, que mereceu atenção apaixonada da crítica, dada a singularidade de sua escrita, recebendo o Prêmio Graça Aranha.
Com seu romance inovador e com sua linguagem altamente poética, a obra de Clarice Lispector se destacou diante dos modelos narrativos tradicionais.
Além de romancista e autora dos aclamados A Paixão Segundo G.H. (1964) e A Hora da Estrela (1977), Clarice firmou-se como contista, graças a títulos como Laços de Família (1960) e A Legião Estrangeira (1964).
Sua obra inclui também livros para o público infantojuvenil e um vasto número de crônicas, sendo hoje amplamente traduzida e divulgada, o que faz com que seja colocada pela crítica ao lado de autores internacionalmente reconhecidos, como Virginia Woolf, Kafka e Katherine Mansfield.
Nasceu Haia Lispector, em 10 de dezembro de 1920, em Tchetchelnik, aldeia da Ucrânia, terceira filha do comerciante Pinkouss e de Mania Lispector. O casal já tinha duas outras meninas: Leia, de 9 anos, e Tania, de 5. O nascimento ocorreu durante a viagem de emigração da família para o Brasil – os pais, judeus, deixam a Ucrânia três anos após a Revolução Bolchevique de 1917.
Em março de 1922, Pinkouss e a família chegaram a Maceió, capital do estado de Alagoas. No país, adotaram novos nomes e Haia – que significa vida ou clara –, passa a ser chamada de Clarice.
Em 1925, a família muda-se de Alagoas para Pernambuco, no bairro da Boa Vista, em Recife, habitado pela comunidade judaica, onde já residiam tios e primos do lado materno de Clarice.
Clarice aprende a ler aos sete anos.Em 1930, após assistir a uma peça no tradicional teatro Santa Isabel, Clarice escreve Pobre Menina Rica, obra em três atos, cujos originais escondeu e acabou perdendo. No mesmo ano, perdeu também a sua mãe, aos 41 anos.
Com 13 anos, Clarice decide tornar-se escritora: “Quando tomei posse da vontade de escrever, vi-me de repente num vácuo. E nesse vácuo não havia quem pudesse me ajudar”.
Em 1935, a escritora muda-se com a família para o Rio de Janeiro. No ano seguinte, termina o curso ginasial e passa a frequentar a biblioteca do bairro, lendo clássicos brasileiros e portugueses, além de obras traduzidas, como O Lobo da Estepe, de Hermann Hesse, que lhe causou forte impacto: “Depois desse livro, adquiri consciência daquilo que desejava ser, como queria ser e o que deveria fazer”.
Em 1939, Clarice começa o curso superior na Faculdade Nacional de Direito. No ano seguinte, publica o conto Triunfo, no semanário Pan, dirigido pelo escritor Tasso da Silveira. A narrativa traz temas que serão recorrentes em sua obra: as dificuldades do relacionamento amoroso relatadas a partir das sensações de uma mulher que, em sua solidão, descobre a força interior.
Também em 1940 – ano em que perdeu o seu pai – Clarice Lispector começa a sua carreira no jornalismo e trabalha como redatora e repórter da Agência Nacional.
Em 1943, casa-se com o amigo de turma, Maury Gurgel Valente e, em 1944 forma-se em direito. Ainda em 1943, Clarice publica seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem.
É aqui que nós começamos a nossa saga por Livros de Clarice Lispector que merecem toda a sua atenção.
1 – Perto do Coração Selvagem (1943)
Ainda em 1943, Clarice publica seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem, que retrata uma visão interiorizada do mundo da adolescência, abrindo uma nova tendência na literatura brasileira.
O romance provocou verdadeiro espanto na crítica e no público da época. Sua narrativa quebra a sequência de começo, meio e fim, assim como a ordem cronológica, e funde a prosa à poesia.
A obra teve calorosa acolhida da crítica e, no mesmo ano, Clarice entrou para a lista de autores cujas obras de estreia receberam o Prêmio Graça Aranha.
“Um romance que faltava.”, foi assim que o crítico literário Antonio Candido se referiu ao romance de estreia da jovem Clarice Lispector, então com 22 anos.
Ainda em 1944, Clarice Lispector acompanhou seu marido, diplomata de carreira, em viagens fora do Brasil. Sua primeira viagem foi para Nápoles, na Itália. Com a Europa em guerra, Clarice ingressou, como voluntária, na equipe de assistentes de enfermagem do hospital da Força Expedicionária Brasileira.
Em 1946, morando em Berna, Suíça, publicou seu segundo livro: O Lustre.
2 – O Lustre (1946)
Em O Lustre se reconhecem características já anunciadas no primeiro romance de Clarice: enredo sem estrutura definida e fluxo de consciência, que valoriza as sensações e a percepção das coisas.
O livro conta a história de Virgínia, desde a infância na Granja Quieta até a vida solitária na cidade. O título remete ao elemento decorativo da casa paterna. Associado às imagens da aranha e do crisântemo (usada em rituais fúnebres), inseto e flor, o lustre introduz uma poética feminina trágica: prevê a “vida terrível” de personagens vocacionados ao isolamento, conflito e à falta de afeto.
Depois, Clarice Lispector dedicou-se a escrever contos, como Mistério em São Cristóvão e Os Laços de Família, de 1948, em que aparecem, pela primeira vez, personagens tomados por um estado de graça diante de fatos aparentemente banais da vida cotidiana, o que seria uma marca da autora.
3 – A Cidade Sitiada (1949)
Em 1949 – pouco depois dei nascimento de seu primeiro filho, Pedro – Clarice Lispector publicou A Cidade Sitiada, segundo ela, um dos seus livros menos gostados, mas que teria preenchido os dias de tédio na cidade suíça: “[…] minha gratidão a este livro é enorme: o esforço de escrevê-lo me ocupava, salvava-me daquele silêncio aterrador das ruas de Berna”, relata na crônica Lembrança de uma fonte, de uma cidade, publicada no Jornal do Brasil, em 1970.
O romance se passa na década de 1920 e está ambientado no pouco atraente subúrbio de São Geraldo, onde vive a jovem Lucrécia Neves, remotamente inconformada com a mesmice de um ambiente sem futuro.
O confronto entre campo e cidade, presente em outras obras da autora, neste romance é essencial para a caracterização da personagem, dividida entre a vila-refúgio de origem, com a qual mantém remotos laços afetivos, e sonhos de uma metrópole romantizada.
Mas a inquietação da moça não vai além disso, pois ela apresenta visível limitação na capacidade de refletir sobre a vida. Seu modo de apreensão do real se dá pelo olhar, que não chega a se transformar em linguagem, em palavra.
Segundo Lispector, a história de Lucrécia expressa a luta vã “de alcançar a realidade” através da “visão total das coisas”.
A imprensa pouco se manifesta sobre o novo título.
Em 1950, Clarice mora por seis meses em Londres, na Inglaterra, com a família. No ano seguinte, regressa ao Brasil, onde publica seis contos na coleção Cadernos de Cultura, editada pelo Ministério da Educação e Saúde e assina a coluna feminina Entre Mulheres, para o semanário Comício, sob o pseudônimo de Tereza Quadros.
Em 1952 – muda-se novamente com a família, desta vez para Washington, nos Estados Unidos, onde publica o livro Alguns Contos e retoma as notas, iniciadas na Inglaterra, para o que seria seu quarto romance: A Maçã no Escuro. Em Washington, nasce seu segundo filho, Paulo, no ano de 1953.
Em 1959, a escritora passa a publicar contos na revista Senhor – como A menor mulher do mundo, O crime do professor de matemática, Feliz aniversário e Uma galinha.
No mesmo ano, separa-se do marido, retornando definitivamente ao Brasil com os filhos, instalando-se no Rio de Janeiro.
Inicia uma coluna no Correio da Manhã, intitulada Correio feminino – Feira de utilidades, sob o pseudônimo de Helen Palmer, etrabalha no Diário da Noite, com a coluna Só Para Mulheres.
4 – Laços de Família (1960)
Neste mesmo ano de 1960, Clarice Lispector lança o livro de contos Laços de Família, reunindo um total de 13 contos, alguns dos quais escritos e publicados anteriormente na imprensa e no formato de coletânea, garantindo à escritora o Prêmio Jabuti de Literatura, no ano de 1961.
Ciente de que o conto é o “irmão misterioso da poesia”, espécie de “caracol da linguagem”, segundo Julio Cortázar, Clarice sequestra o leitor e, sem trégua, invade-o com um acúmulo de sentimentos e entrevisões que, aglutinados, se abrem para realidades mais vastas.
Como um ímã, ela o arrasta para o interior de cotidianos urbanos e domésticos a partir dos quais surgem, como sempre acontece em sua literatura, a natureza íntima das pessoas e das coisas, a nervura dos seres, seus infinitos e domínios mais insuspeitos.
Tudo isso, segundo ela mesma, “cosendo por dentro” o círculo imaginário onde se situam suas personagens e sua lógica organizadora. Em cada um dos contos de Laços de Família, o projeto de escrita de Clarice vai criando e consolidando uma paisagem extraordinariamente expressiva sustentada pela força de um discurso que parece muitas vezes escapar dos limites da ficção propriamente dita para ingressar no terreno do ensaio filosófico.
5 – A Maça no Escuro (1961)
Em 1961, depois de muitos anos de espera, Clarice Lispector finalmente lança o romance A Maçã no Escuro, com sessão de autógrafos na abertura do II Festival do Escritor Brasileiro.
“É o melhor. Não posso defini-lo, como é, como não é… posso apenas dizer que é muito mais bem construído que os anteriores.”, declarou a escritora na ocasião da publicação do romance que, ao lado de A Paixão Segundo G.H. (1964), marca um ponto de culminância em sua obra, por enfrentar a experiência do limite da maneira mais radical.
Narrado em terceira pessoa, o enredo gravita em torno de Martim, que, em fuga por um crime que supostamente cometeu, oscila entre o medo e o desejo de liberdade.
O leitor atento e paciente perceberá que pouco importa se houve ou não o crime, se Martim será ou não condenado. Desde o início, as linhas fundamentais da escrita de Clarice já denunciam que não haverá ali uma narrativa policial nos moldes convencionais, onde a força do enredo recai no enigma, no indício e na decifração.
A cuidadosa organização simétrica de A Maçã no Escuro – são três capítulos, três os personagens centrais e três os secundários – configura-se como uma de suas qualidades estruturais. Além disso, a atmosfera noturna e sombria abre passagem para a noite interior de Martim e para seu permanente estado de vigília. Um herói a quem se vai conhecendo aos poucos; um homem que quer dar um “destino ao enorme vazio que aparentemente só um destino enche”.
Em 1962 Clarice Lispector recebe o prêmio Carmen Dolores Barbosa, que lhe é entregue pelo presidente Jânio Quadros, em São Paulo.
Em 1963, faz conferência sobre o tema “Literatura de vanguarda no Brasil”, no XI Congresso Bienal do Instituto Internacional de Literatura Ibero-Americana, na Universidade do Texas, nos Estados Unidos.
“Acho que existe uma vanguarda forçada, isto é, o autor se determina a ser ‘original’ e vanguardista. O que para mim não vale. Só me alegra muito a originalidade que venha de dentro para fora e não o contrário”, afirma no livro Clarice Lispector – Esboço para um possível retrato, de Olga Borelli.
Em 1964, depois de sete anos sem lançar um livro, Clarice lança A Paixão Segundo G.H. No mesmo ano,publica o conjunto de contos a Legião Estrangeira.
6 – A Paixão Segundo G.H. (1964)
Nas linhas que antecedem a abertura deste romance, Clarice Lispector dirige-se a seus “possíveis leitores” dizendo que aquele livro é “como um livro qualquer”, mas que ficaria “contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada”.
Se considerássemos apenas o fio do enredo e somente ele, A Paixão Segundo G.H. talvez fosse mesmo um livro qualquer. Mas, um passo para dentro do romance, e encontramos uma narração em primeira pessoa, G.H., em absoluto estado de concentração e dilatação interior, após a travessia do que se tornaria para ela uma experiência limite. D
Depois de despedir a empregada, G.H. inicia uma faxina no quarto de serviço. Mal começa a limpeza, vê uma barata. Enojada do inseto, ela decide esmagá-lo contra a porta do armário. O momento decisivo do enredo e do discurso culmina quando G.H. devora a massa pastosa e branca da barata morta. Esse gesto desencadeia a desmontagem humana da personagem e lhe impõe uma (in)compreensão súbita dessa “construção difícil que é viver”.
Trata-se de um livro em que tudo concorre para uma experiência de choque, para uma vivência limite centrada no encontro de G.H. com o inseto. É preciso, então, que esse possível leitor “de alma já formada”, de mão dada com a protagonista, assuma com ela todos os riscos desse movimento de descida aos infernos que poucos, muito poucos, são capazes de suportar.
Nessa operação meticulosa da escrita, que extrai o máximo de rendimento de um enredo banal, Clarice realiza o que para muitos será o seu maior empreendimento literário.
A partir da publicação de A Paixão Segundo G.H., a obra de Clarice Lispector passa a ser examinada com maior atenção pela crítica; são publicados ensaios de Benedito Nunes, “A náusea em Clarice Lispector”, e José Américo Motta Pessanha, “Itinerário da paixão”.
Em 1965, é encenada a peça Perto do Coração Selvagem, no teatro Maison de France, no Rio de Janeiro, baseado em textos do livro homônimo, de A Paixão Segundo G.H. e de A Legião Estrangeira. O espetáculo tem direção de Fauzi Arap e conta com José Wilker, Glauce Rocha e Dirce Migliaccio no elenco.
Em 1966, Clarice adormece com um cigarro aceso, provocando um incêndio em sua casa. Sofre graves queimaduras no corpo, corre risco de morte e passa dois meses hospitalizada, saindo com sequelas, principalmente na mão direita.
As cicatrizes profundas na perna e na mão direitas a levam a forte depressão, e a escritora passou a viver isolada, sempre escrevendo.
7 – O Mistério do Coelho Pensante (1967)
Apesar do estado de espírito abalado, publica seu primeiro livro para crianças, O Mistério do Coelho Pensante, seu primeiro livro infantil, que escrevera para o filho, Paulo, nos Estados Unidos, e que lhe garante o prêmio de melhor livro infantil do ano com a Ordem do Calunga, instituída pela Campanha Nacional da Criança.
Em nota que antecede o livro, a autora deixa claro que o texto pressupõe a leitura oral, por um adulto, que terá por tarefa contribuir para o preenchimento das entrelinhas. E os vazios de significação são muitos, pois a narrativa é esgarçada e traz muitas perguntas. O procedimento indicado –– de encenação da leitura –– parece servir também para as outras produções da autora dedicadas à infância, que requerem a contação para que se tornem efetivas.
O enredo centra-se no coelho Joãozinho, que cheirava ideias, e inventa uma maneira de sair de sua jaula quando não há comida. Os humanos percebem e não deixam de dar-lhe alimento. No entanto, o coelho deseja muito mais do que os humanos lhe oferecem, e sua vida passa a ser “comer bem e fugir, e sempre de coração batendo”. Mais do que pela aventura, o coelho tomara gosto pela liberdade, e é fora da jaula que ele consegue realmente ser um coelho pensante.
No ano seguinte, Clarice publicou crônicas no Jornal do Brasil e passou a integrar o Conselho Consultivo do Instituto Nacional do Livro. Como cronista, alcança grande popularidade.
Em 1968, a autora passa a colaborar na revista Manchete, na seção “Diálogos possíveis com Clarice Lispector”, em que entrevista personalidades do mundo político e artístico. No mesmo ano, lança seu segundo livro infantil: A Mulher que Matou os Peixes.
8 – Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres (1969)
Em 1969, Clarice Lispector lança Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres. O romance ganhou o prêmio Golfinho de Ouro, do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro.
A personagem Loreley, conhecida entre os amigos pelo apelido Lóri, sai da cidade de Campos para morar e trabalhar como professora primária no Rio de Janeiro. Única filha mulher, com quatro irmãos, nasce de família rica, que a ajuda todo mês com uma mesada.
O livro conta sua história de amor com Ulisses, professor universitário de filosofia a quem conhece por acaso, quando ele lhe oferece uma carona. Desde então, tem início uma experiência amorosa que foge aos padrões. Trata-se de uma aprendizagem, estimulada por Ulisses, mas que ambos experimentam: o objetivo é amadurecer a relação e aguardar o momento certo – pleno – para fazer amor.
A narrativa acompanha o lento e saboroso processo de espera, quando enfim poderão usufruir de uma troca afetiva densa e livre. Ela, especialmente, que já tivera namorados e relações sexuais, terá de enfrentar a própria sombra: vencer os medos que a impedem de viver plenamente a entrega.
Em 1971, Clarice lança Felicidade Clandestina, reunião de contos publicados anteriormente na imprensa, incluindo um conjunto de escritos em que rememora a infância no Recife.
9 – Água Viva (1973)
Em 1973, publica Água viva , depois de três anos de elaboração: “Acho que foi um salto que eu dei. Há anos este livro existe em mim, todo vago, todo confuso. E, de repente, senti os trabalhos de parto. A partir daí, comecei a entender melhor o que queria dizer. […] era essa coisa quase impossível: captar o instante que passa”.
Híbrido, sem enredo convencional, não é romance, poesia, diário, ensaio filosófico, mas tem fragmentos de cada um desses gêneros. A autora desestrutura a forma romanesca numa narrativa fluida. Ideias e imagens se fundem e se transformam em moto-contínuo. A busca de conexão direta entre corpo, pensamento e linguagem faz que ela se expresse como quem pinta ou interpreta música fora do padrão realista de representação.
Pois não busca o concreto ou o analógico como garantia de apreensão do real; ao contrário: a indefinição de categorias como cor, forma, palavra; a própria consistência significativa do silêncio; e o mistério da criação é que a levam a romper fronteiras no âmbito da narratividade e da abordagem da existência humana e da criação.
Em Água Viva não há história linear nem tema central. Há, sim, um mote que provoca a escrita: o tempo, a quarta dimensão do “instante-já”, sucedido por um instante-jamais, fugidio. O dito é sempre fugaz.
Em 1974, a escritora lança a coletânea de contos Onde Estivestes de Noite e A Via Crucis do Corpo, livro pouco aceito pela própria autora, que diria, em tom de justificativa: “Há hora para tudo. Há também a hora do lixo”.
No mesmo ano, seu cão Ulisses morde-lhe o rosto e quem a socorre é o cirurgião plástico e amigo Ivo Pitanguy, que também cuida de suas queimaduras na mão.
Ainda em 1974, publica outro livro infantil: A Vida Íntima de Laura, e – em 1975 – como passatempo, Clarice dedica-se à pintura, atividade que continua no ano seguinte. No total, produziu 18 quadros em técnica mista, que buscam – tanto como na escrita – fugir do figurativo rumo à abstração. Sua produção ganhou exposição organizada pelo Instituto Moreira Salles, em 2009, no Rio de Janeiro, com o nome “Clarice pintora”.
Em 1976, pelo conjunto de sua obra, Clarice ganhou o primeiro prêmio do X Concurso Literário Nacional de Brasília.
Em 1977, concedeu entrevista a Júlio Lerner, para o “Panorama Especial”, da TV Cultura. No vídeo, se diz triste e cansada. O programa é seu único registro audiovisual e só seria transmitido postumamente, tornando-se um clássico.
Também em 1977, Clarice trabalha no livro infantil Quase de Verdade e, por encomenda da fábrica de brinquedos Estrela, produz outras 12 histórias infantis, reunidas sob o título Como Nasceram as Estrelas .
10 – A Hora da Estrela (1977)
Ainda em 1977, a escritora lançou Hora da Estrela, sua última obra publicada em vida, na qual conta a história de Macabéa, uma moça do interior em busca de sobreviver na cidade grande.
A versão cinematográfica desse romance, dirigida por Suzana Amaral, em 1985, conquistou os maiores prêmios do festival de cinema de Brasília e deu à atriz Marcélia Cartaxo, que fez o papel principal, o troféu Urso de Prata, em Berlim, em 1986.
Trata-se de uma novela escrita na forma de contraponto: de um lado, a história da ingênua Macabéa, migrante nordestina pobre em luta pela sobrevivência na cidade grande; de outro, o drama do escritor e seu processo de criação ao retratar uma pessoa distante de seu universo socioeconômico e ser capaz de se comunicar com ela: “Tentarei tirar ouro do carvão”, diz ele. A moça alagoana, sem recursos para lidar com os códigos urbanos numa cidade do porte do Rio de Janeiro, despreparada para enfrentar a competição capitalista, sem atributos que lhe garantam sucesso no mercado do amor e do trabalho, enfrenta a hipocrisia de pessoas próximas.
O percurso de Macabéa, de corpo sem atrativos e sem preparo profissional, desmascara a crueldade humana e a brutal desigualdade social no Brasil. O narrador Rodrigo S.M., máscara ficcional de Clarice Lispector, se vê como intruso ao traduzir ficcionalmente o “sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina”.
O livro discute a linguagem em nível filosófico, ao pôr em cheque a palavra como meio de conhecimento; sociológico, ao representar conflitos de classe, com destaque para a função do escritor e a inserção do nordestino na sociedade brasileira; e estético, ao tratar do gesto criador.
Neste mesmo ano de 1977, Clarice Lispector toma notas para um novo romance intitulado Um Sopro de Vida. Mas, infelizmente, a escritora falece antes de publicar o livro, um dia antes de completar 57 anos de idade, por conta de um adenocarcinoma de ovário irreversível.
Um Sopro de Vida é publicado postumamente, em 1978.
Clarice Lispector fez parte da Terceira Geração Modernista ou Geração de 45 – época de renovação das formas de expressão literária na prosa e, principalmente nos gêneros conto e romance. Em busca de uma linguagem especial para expressar paixões e estado da alma, a escritora utilizou recursos técnicos modernos como a análise psicológica e o monólogo interior.
Clarice Lispector é considerada uma escritora intimista e psicológica, mas sua produção acaba por se envolver também em outros universos, sua obra é também social, filosófica e existencial.
As histórias de Clarice raramente têm um começo meio e fim. Sua ficção transcende o tempo e o espaço, e os personagens, postos em situações limite, são com frequência femininas quase sempre situadas em centros urbanos.
Clarice Lispector nunca aceitou o rótulo de escritora feminista. Apesar disso, muitos de seus romances e contos têm como protagonistas personagens femininas.
A escritora viveu quase duas décadas fora do Brasil e escreveu muitas cartas aos amigos, e com olhar cosmopolita ela fala sobre os absurdos do cotidiano, as agruras da condição humana e as banalidades da vida. Suas cartas foram reunidas na obra Todas as Cartas, publicada em 2020.