Arte Urbana no Brasil: das ruas às telas, origens e estilos

Clarissa Sayumi
12:49 20.05.2025
Arte e cultura

Arte Urbana no Brasil: das ruas às telas, origens e estilos

Grafite, muralismo e intervenções transformam cidades em galerias a céu aberto

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- 20.05.2025 - 12:49
Arte Urbana no Brasil: das ruas às telas, origens e estilos
Arte Urbana no Brasil: das ruas às telas, origens e estilos

Ao longo das grandes cidades brasileiras, muros e paredes cinzentos cedem espaço a explosões de cor, personagens e símbolos: é a arte urbana ocupando o concreto. Grafites, murais e intervenções urbanas contam histórias do cotidiano, protestam e reinventam paisagens.

Desde os primeiros riscos ousados dos anos 1970 até os gigantes coloridos de hoje, os artistas de rua conquistaram visibilidade. Instituições culturais como o IPHAN organizam roteiros de grafite em parques e museus para “valorizar e desmistificar a arte urbana”, enquanto galerias e coletivos reconhecem seu papel criativo.

Raízes e evolução do grafite brasileiro

A tradição de desenhar nas paredes é tão antiga quanto a própria humanidade (lembre-se das pinturas rupestres), mas o grafite moderno tal qual conhecemos nasce nos anos 1960-70. Em Nova York e Filadélfia, jovens do hip-hop pintaram suas “tags” (assinaturas estilizadas) pelo metrô e muros, criando o graffiti urbano.

Esse movimento chegou ao Brasil no fim dos anos 1970, em São Paulo. Jovens artistas como Carlos Matuck, Alex Vallauri e Zé Carratú começaram a deixar suas marcas na paisagem paulista. Eram inscrições de letras e personagens simples, ainda anônimas, feitas muitas vezes de madrugada. Aos poucos, outros nomes surgiram nessa primeira geração pioneira do grafite brasileiro: Waldemar Zaidler, John Howard e Rui Amaral.

Alex Vallauri | Reprodução

Nos anos 1980 e 90 o grafite brasileiro ganha identidade própria. Novos artistas ampliam as técnicas: surgem o stencil, adesivos, colagens e estilos figurativos. Logo aparecem Os Gêmeos (Otávio e Gustavo Pandolfo), Vitché, Speto, Binho Ribeiro, Tinho, e outros que fariam do grafite nacional um dos mais reverenciados no mundo.

Os Gêmeos, por exemplo, começaram como grafiteiros no bairro Cambuci, em São Paulo, e criaram um estilo único de personagens sonhadores e “amarelos”, influenciado pela cultura hip-hop e também pela pichação paulistana. Com seus murais repletos de bonecos e elementos do folclore, eles ajudaram a definir uma estética brasileira no grafite e levaram suas obras a museus e ruas de várias cidades globais.

Vale lembrar que no Brasil costuma-se distinguir grafite de pichação. Enquanto o grafite é visto como arte urbana (apesar de também ser tipicamente feito sem autorização), a pichação é vista como atos de pixação de letras e símbolos, um fenômeno urbano próprio.

Essa distinção “grafite vs. pichação” só existe no Brasil. Perante a lei, em ambos os casos, são atividades sem permissão (vandalismo), mas a visão pública é diferente. A partir dos anos 2000, o grafite passou a ser mais reconhecido como arte visual, ganhando espaço em eventos, bienais e até no estatuto do patrimônio cultural imaterial, enquanto paralelamente surgiram talentos consagrados.

Principais manifestações: grafite, muralismo e intervenções

A “arte urbana” engloba diferentes linguagens que ocupam o espaço público:

  • Grafite tradicional: feito com spray, em muros ou trens, letras estilizadas e personagens coloridos. Ganhou fama nos anos 1990/2000 pelos “pieces” (painéis complexos) e personagens de sotaque paulista.

Além das tags e letras, muitos grafiteiros incorporam ilustrações e mensagens sociais em seus traços. Hoje, o grafite brasileiro é visto como expressão artística das artes visuais (“street art” ou “arte urbana”) ainda que nascido como ato marginal.

  • Muralismo: painéis de grande escala muitas vezes encomendados. Artistas como Eduardo Kobra tornaram-se conhecidos por murais monumentais em fachadas, trazendo realismo colorido.
Kobra – Instagram | Reprodução

Outros como Ale Saito ou Os Gêmeos também produzem murais colaborativos. Os murais geralmente usam tinta acrílica (às vezes tinta látex ou automotiva) e são pintados com autorização, ocupando trechos inteiros de parede para retratos, homenagens ou temas sociais.

  • Stencil e outras intervenções: trabalho com moldes (stencils), colagem de papel (paste-ups), lambe-lambes e adesivos. Essas intervenções surgem na cena brasileira sobretudo na última década. Exemplos conhecidos são os paste-ups estilizados nas ruas de São Paulo, Piauí e Rio. Essas ações aproximam a arte das pessoas, pois podem ter caráter efêmero e combinar imagem+texto.
  • Intervenções urbanas e performances visuais: além das artes plásticas de muro, há intervenções que dialogam com o espaço – cadeiras pintadas, adesivagens de objetos, desenhos em piso – e até performances que misturam teatro com arte pública.

Na prática, “intervenções urbanas são expressões artísticas que transcendem o espaço das galerias e se integram ao cotidiano das cidades, questionando padrões, revitalizando áreas degradadas e aproximando o público da arte”.

Independentemente da técnica, as artes urbanas brasileiras buscam dialogar com o povo. Grafites espalhados em comunidades e grandes avenidas criam percursos artísticos pelas cidades.

Em São Paulo, o chamado “Beco do Batman” e a zona leste reúnem grafites famosos. No Rio de Janeiro, pixação e cores ganham as ladeiras da Lapa e Santa Teresa. Em Belo Horizonte, muralistas e grafiteiros tornaram-se chamarizes turísticos.

O Museu Aberto de Arte Urbana (MAAU-SP), por exemplo, é um corredor de 66 painéis de grafite sob o viaduto na Av. Cruzeiro do Sul, que reúne criações de artistas como Binho Ribeiro e Chivitz e incorporam o grafite ao espaço público.

Embora a arte urbana brasileira tenha se profissionalizado, ainda há tensões: grafitar sem permissão continua proibido por lei. Segundo especialistas, mesmo hoje, muitos ainda veem o grafite apenas como vandalismo. Mas esse estigma tem diminuído.

Pesquisa recente destaca o viés crítico do grafite nas ruas: os muros se tornaram telas de comentário social, tratam temas atuais (como desigualdade, meio ambiente, crises) e, por vezes, apoiam campanhas solidárias.

Em 2020, artistas do mundo todo criaram obras contra a pandemia, com o “museu virtual de solidariedade” nas redes sociais. Essas práticas mostram como a arte urbana dialoga diretamente com a sociedade contemporânea.

Artistas em destaque: dos veteranos às novas gerações

A história da arte urbana brasileira está marcada por nomes icônicos, cada um com estilo próprio:

  • Os Gêmeos (Otávio e Gustavo Pandolfo, 1974) – Começaram no Cambuci (SP) em 1990, influenciados tanto pelo hip-hop quanto pela pichação. São mundialmente famosos pelos bonecos oníricos, figuras humanas de pele amarela e cenários fantasiosos.

Fizeram murais na Inglaterra, Estados Unidos, França, entre outros. Segundo pesquisadores, a geração de Os Gêmeos e colegas dos anos 90 fez do grafite brasileiro “um dos melhores estilos do mundo”. Hoje seu nome é sinônimo de grafite nacional, com exposições em museus de arte contemporânea.

Veja também:

  • Nina Pandolfo (1977) – Uma das artistas mais proeminentes da arte urbana. Revelada em São Paulo na década de 1990, Nina pintou nas ruas as famosas “meninas de olhos grandes”, um de seus traços recorrentes.
Nina Pandolfo – Instagram | Reprodução

 Sua arte, delicada e lúdica, mistura poética e crítica social. Desde os primeiros grafites, como um grande painel na Avenida Tiradentes em frente à Estação Luz, ela ganhou reconhecimento internacional.

Participou da Bienal de São Paulo e fez murais em várias cidades do mundo. Seu trabalho explora o universo feminino com cores vibrantes e traços suaves e mostra que a arte urbana pode ser, ao mesmo tempo, engajada e poética.

  • Eduardo Kobra (Carlos Eduardo Fernandes Leo, 1975) – Autointitulado “grafiteiro de estilo psicodélico”, Kobra cresceu na Zona Sul de São Paulo e hoje é um dos muralistas mais famosos do país, com obras espalhadas por mais de 30 países.
Kobra – Instagram | Reprodução

Sua trajetória artística começou nos anos 1990, quando realizava trabalhos como pintor de cenários e cartazes. No entanto, foi a partir de 2007 que sua arte ganhou maior visibilidade, especialmente com o projeto “Muro das Memórias”, no qual reproduzia fotografias históricas de São Paulo em murais urbanos.

Outra de suas obras mais emblemáticas é o mural “Etnias”, pintado em 2016 no Boulevard Olímpico, no Rio de Janeiro, em comemoração aos Jogos Olímpicos. Com 15 metros de altura e 170 metros de comprimento, o mural retrata cinco rostos de diferentes etnias dos cinco continentes, simbolizando a união dos povos. A obra foi reconhecida pelo Guinness World Records como o maior grafite do mundo.

Além de “Etnias”, Kobra realizou diversos outros murais de grande impacto, como retratos de Oscar Niemeyer, Ayrton Senna e Chico Mendes. Em 2022, a convite da Organização das Nações Unidas, criou um painel de quase 400 metros quadrados exibido na sede da entidade, nos Estados Unidos.

Kobra também é reconhecido por seu engajamento social. Em entrevistas, ele destaca a importância de transmitir mensagens de paz, tolerância e respeito através de sua arte.

  • Mimura Rodriguez: ancestralidade e resistência nos muros urbanos. Artista visual e grafiteira paulistana, nascida no bairro do Jabaquara, filha de mãe japonesa e pai uruguaio,transita entre diversas linguagens artísticas, como xilogravura, tapeçaria e grafite. Sua obra é marcada por temas como ancestralidade, maternidade e resistência feminina.

Um de seus trabalhos mais emblemáticos é o mural “Enraizadas”, de 236 m², pintado em 2023 em um conjunto habitacional da CDHU no Itaim Paulista, zona leste de São Paulo. A obra retrata três gerações de mulheres – avó, mãe e filha – entrelaçadas por raízes que simbolizam a força das matriarcas nas famílias periféricas. O projeto foi selecionado pelo Museu de Arte de Rua (MAR), da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, e reconhecido por sua representação da maturidade feminina.

Além de sua produção artística, Mimura é cofundadora do projeto Seiva Cultural, que visa promover e impulsionar a participação de mulheres no grafite, oferecendo oportunidades de remuneração e reconhecimento profissional. Em entrevista ao programa “Bem Viver”, ela destacou a importância de ocupar o espaço urbano como mulher e artista: “Estar na rua pintando é bastante desafiador. A gente entende que os nossos corpos na rua, independente do que a gente estiver fazendo, já são mais vulneráveis. Estar na rua é sempre um ato de resistência.

  • Outros nomes – Vários artistas e coletivos também merecem destaque. Alex Vallauri foi um pioneiro no Brasil (1960-89), um dos primeiros a grafitar legalmente em escolas. Speto, Tinho e Binho Ribeiro influenciara, a cena de São Paulo nos anos 1990 com painéis colaborativos.
Binho Ribeiro – Instagram | Reprodução

Celso Zerbini e o grupo Projeto Graffiti levaram o grafite a projetos de arte pública. Na Bahia, artistas como o duo Os Leões e Raphael Albuquerque misturam grafite com elementos da cultura nordestina. No Nordeste, o muralismo ganhou força com nomes como Vicente de Paulo. Em Belo Horizonte, Oz (Leandro Assis), Sany Pitbull e Coletivo Faca chamam atenção. A artista Rafaela Rocha e o coletivo de intervenção Mumbai fazem arte urbana engajada em Fortaleza.

Relevância cultural e social hoje

Hoje, a arte urbana no Brasil supera as ruas: virou tema de estudos, museus e eventos. Desde 2023, o IPHAN promove o “Roteiro de Arte Urbana”, passeio guiado entre muros grafitados, com objetivo de “valorizar e desmistificar a arte urbana”.

Em São Paulo, circuitos como o MAAU transformaram pistas de trânsito em museus a céu aberto, ocupando espaços com arte urbana em estruturas oficiais do metrô. Universidades e ONGs criam cursos e pesquisas sobre street art, seja do ponto de vista cultural ou econômico.

No design e na publicidade, o grafite virou “tendência cool”: marcas recorrem a estilistas de rua para produtos e levam essa estética para outdoors e campanhas publicitárias, processo chamado de “art infusion”.

Socialmente, a arte urbana dá voz a grupos marginalizados e democratiza o acesso à arte. Em vez de exposições restritas, qualquer cidadão pode dialogar com um mural na rua. Grafites levantam bandeiras de combate ao racismo, à violência policial, à destruição ambiental, temas do dia a dia. Também já houve ações filantrópicas: por exemplo, campanhas de grafite online para arrecadação de fundos durante crises recentes.

O próprio clima multicultural do país aparece na arte urbana: Os Gêmeos exploram folclore brasileiro; Nina Pandolfo ressalta a diversidade de gênero e infância; Kobra cria murais que rememoram ícones da história global e brasileira. Essa sinergia entre arte e questões sociais faz da arte urbana uma expressão cultural viva e atual.

Além disso, a arte urbana tem hoje relevância econômica: turismo cultural gira em torno de mural spots e grafite tours em grandes centros. Coleções de museus incluíram artistas de rua como expoentes. Graças a isso, grafiteiros profissionais (muitos ex-pichadores) conseguem viver de encomendas e exposições.

A identidade da arte urbana no Brasil

A arte urbana brasileira percorreu um longo caminho: saiu da clandestinidade das madrugadas e das periferias para ganhar muros de museu e até certidões de patrimônio. O grafite e o muralismo tornaram-se palcos de debate público, de celebração da cultura urbana e de experimentação estética.

Com diversas técnicas e temáticas, a arte urbana reflete contrastes sociais: convivem nos grafites mensagens de esperança e de crítica, tradição e inovação. Os artistas deram personalidade própria à cena brasileira.

A cada passagem de tinta ou traço de spray, afirmam que as cidades também podem ser galerias, onde o público é parte ativa. No contexto contemporâneo, a arte urbana traduz o espírito criativo, transgressor e acolhedor do Brasil.

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