Romantização, amargura e desejo: disco de Melly traz o amor por outra mulher
Julianna Sá
Jornalista, curadora e pesquisadora musical
Romantização, amargura e desejo: disco de Melly traz o amor por outra mulher
"Amaríssima" - superlativo de amarga - se apresenta como um disco sobre decepções, mas sem esconder o desejo, aspecto frequentemente escanteado quando se retrata a relação entre mulheres
Tive a sorte de ser fisgada por Melly em meados de 2021, quando saiu seu primeiro EP, “Azul”, com o hit homônimo que viria a embalar minha breve morada em Salvador, em 2022.
Apesar de, na época, ter apenas 20 anos, a artista baiana já parecia pronta. Em seus shows, mostrava segurança e domínio do que começava a mostrar para um público maior.
Nos singles que iam saindo em fila, aprofundava seu mergulho em referências negras estadunidenses enquanto as costurava com sua base baiana, fazendo uma espécie de R&B-soteropolitano, onde o sotaque era especialmente musical, não meramente vocabular ou relativo ao ritmo da pronúncia de cada verso envolvente que cantava.
Melly parecia uma veterana entre seus pares, e pronta para estourar, como o mercado costuma esperar. Seu primeiro disco, o recém-lançado “Amaríssima” (Slap), mostra que ela ainda podia ir mais fundo, e ela vai, em especial na abordagem amorosa que faz em cada uma das 12 faixas do álbum.
O amor, destrinchado entre ilusões frustradas, romances interrompidos e aprendizados, poderia soar comum, como qualquer disco romântico sobre decepções amorosas. Mas Melly, mais inteira e pronta que nunca, faz da primeira pessoa e da segunda pessoa de suas composições, agentes especiais na canção brasileira.
Ao longo de 10 composições (são duas vinhetas que completam as 12 faixas), a artista canta seu amor para um eu-lírico feminino em pelo menos seis delas, com versos como “Sabe, né, que eu sinto saudades de você, mulher” (Falar de amor), “Ela tem cheiro de cacau, mas se queimou comigo” (Cacau). Ou “Todas querem alguma coisa, qual seu propósito aqui?”(Derreter e suar), “É claro que eu gasto meu tempo contigo, bandida” (Bandida), “Saio de casa sem rumo só pra ver ela” (10 minutos), e “Eu penso nela inevitavelmente” (Bye Bye), fazendo de “Amaríssima” um disco sáfico singular na música brasileira, num universo que começa tendo Gal e Bethânia no final dos anos 60 e 70 cantando personagens femininas construídas por compositores homens, e que se consolida com compositoras como Simone e Rorô, que cantam seus amores sem rodeios a partir dos anos 80, e chega até os atuais anos 20 com Ludmilla levando seu amor lésbico às rádios populares, não sem ter passado pelo marco que Ana Carolina representou nos anos 2000.
Mas gosto como Melly vai além, construindo um álbum quase inteiramente dedicado a personagens femininos. Seu primeiro disco não traz apenas o romance – e um punhado de decepções e dores.
Estão retratadas ali as angústias, ansiedades e frustrações, mas sempre construídas em torno de muita libido, com versos quentes do começo ao fim do álbum. Mesmo quando trata de rompimento – e ele é central na narrativa do álbum -, o lamento jamais deixa de passar pelo desejo, ou pela impossibilidade de vivê-lo.
A importância dessa abordagem libidinosa me faz pensar imediatamente em Hannah Gadsby, e seu sucesso Nanette (2018), espécie de stand-up às avessas em que, dentre muitas desconstruções sobre sua vivência homosexual, ela pontua a ausência de visibilidade ao desejo entre mulheres, com tiradas como “Lésbicas? Mas o que elas são, o que elas fazem de fato? Não se preocupe com elas, carinho não faz mal a ninguém”.
E Melly ilumina o desejo de maneira única, sem bandeiras, discursos, ou qualquer abordagem vazia de um ativismo necessário. É de forma absolutamente natural que ela vai do beijo ao sexo, tanto em letras bem construídas como em sonoridades que dão contornos ainda mais acesos ao disco, sem abrir mão de outros sentimentos como melancolia ou angústia.
Já na faixa de abertura, talvez a mais amarga do álbum, surgem versos como “To querendo me bater com você / qualquer dia desses”, dito entre uma levada de pagodão baiano fundido ao jersey club, gênero eletrônico oriundo especialmente do hip hop e do R&B.
Na sequência, Melly entoa “Um beijo, um toque, um gole (…) um pedaço de você”, fazendo de “Cacau” seu samba-reggae-pop-amapiano.
O desejo segue permeando as decepções, com versos como “Horas passeando por você / não canso nem se eu quisesse”, em “Paraíso”, na qual a percussão marcada e constante é uma boa tradução sonora para a vontade intensa pelo outro. Em “Derreter e suar”, o R&B à baiana deságua diretamente num pagodão no refrão, enquanto o discurso sobre o desinteresse alheio anuncia que nesse jogo o eu-lírico não vai “derreter e suar”, que batiza a canção.
Ainda há versos como “Fizemos barulho no carro / boatos / relatos / é claro que eu gasto / meu tempo contigo, bandida”, na canção mais ressentida do álbum, onde o amargor chega num recado direto, mas também cheio de memórias quentes.
Até nos mais melancólicos versos, como em “10 minutos”, parceria de Melly com Liniker, que também participa da faixa, a libido se apresenta melodicamente entre o trap e o soul, com versos sedutores entre arranjos de cordas não menos envolventes.
Em uma estreia que poderia ser somente uma reunião de canções melancólicas e dançantes, prontas para expurgar mágoas – o que já seria ótimo -, Melly consegue fazer soar, não por acaso, uma quase ode ao desejo. O desejo delas.
Ouça também outras artistas que celebram o desejo entre mulheres:
Bruna Mendez Em 2024, é impossível falar de desejo e música contemporânea sem falar de “Love Songs, Vol. 1”, onde a artista goiana aprofunda a abordagem, com versos ~ explícitos (essa palavra constantemente esvaziada) sobre o encontro entre duas mulheres.
Sáficas: Jadsa, Josyara, Juliana Linhares, Maria Beraldo e Mahmundi Projeto paralelo nas carreiras individuais das artistas, Sáficas é uma celebração à canção feita no Brasil por mulheres lésbicas, e o repertório vai de Cássia Eller e Marina Lima até as composições próprias de cada uma delas. Ainda sem registro fonográfico, o grupo tem circulado por shows em casas de São Paulo, e é imperdível.
Josyara
Presente na indicação acima, destaco em separado a cantora, compositora, instrumentista e produtora baiana porque suas canções são incontornáveis quando o assunto é desejo entre mulheres. “Fogueira”, presente em “Mansa Fúria”, é minha favorita, com seus versos “tem uma preta muito linda, ela gosta de mim (…) / Ela é de leão e tem fogo”.
Anelis Assumpção Das primeiras músicas a me fisgar pelo tema, “Toc toc”, de 2018, traz Anelis num relato que escala da fuga do desejo até o encontro com uma igual, chegando aos versos “Contudo, me tranquei no banheiro / E te adorei tão secreta / Até que toc-toc-toc / Pela fresta te vi / Abri a porta pra ti / Mesmo ali nos amamos”. Dos destaques de “Amigos imaginários”, disco cheio de outras canções pra gente reagir com 🔥 nos stories.
Letrux Ao lado de Bruna beber, Letícia Novaes compôs um dos hinos contemporâneos para lésbicas. “Que estrago”, hit (de nicho, como costumam ser os hits atualmente) do primeiro álbum que assina como Letrux, é momento de catarse em seus shows.
Aíla e Dona Onete Não há idade para sonhar a liberdade de amar. A prova disso é a parceria das paraenses Aíla e Dona Onete. Rainha do carimbó, Dona Onete foi quem sugeriu o termo “Lesbigay”, que segundo ela seria um lugar onde se pode amar sem medo ou pudor. A música é um dos destaques dançantes do segundo disco de Aíla, artivista importante na arte LGBTQIPNA+.
1. Melly, esse é um disco sobre o amargo, como o título indica, mas há nele também muita libido e prazer. Conta um pouco sobre essa conjugação?
Amaríssima, por consequência, também é paixão. Também é fulgaz. A volúpia também é amarga, já que quando não queima, a falta consome. A conjugação desse disco é visceral.
2. Das dez composições (duas são espécie de vinhetas), seis são direcionadas a um eu-lírico feminino. Você traz o amor lésbico de forma muito natural no álbum, sem precisar erguer bandeiras ou discursos. Ao mesmo tempo, é um disco que tem uma certa ambição pop. Apesar de outras músicas de amor já lançadas, é nesse disco que isso fica mais evidente. Como isso se deu na sua criação musical?
Sei que precisava falar sobre o que tenho aprendido com o Amor. Construí esse álbum pra ser sincero, pra conversar com essa verdade que não é comumente exposta, que é real pra muita gente, e independente do que o mercado aceite ou não, Amaríssima traduz uma realidade que compartilho com muitos. Fala de Bahia, fala de paixão, fala sobre amadurecer e ser o que se é. Foi tudo o que tentei traduzir.
3. O “Amaríssima” desenha de forma aprofundada a sua linguagem musical. Brinco que você desenvolveu algo como um R&B-soteropolitano, mas há muitos braços da música
negra, tanto gringa quanto brasileira, em especial baiana, no disco. Conta um pouco sobre essas referências?
Meu amor à Música me fez ser muito eclética. Black Music é minha referência principal, mas não há muita coisa que eu não consuma. Em casa, cresci rodeada de som e musicalidade, por meu pai ser também artista e ter me apresentado o mundo. Uma vez me apaixonei por Amy Winehouse e descobri nela o internacional, aprendi inglês ouvindo, outra vez ouvi Marisa Monte e aprendi a ser doce, outra hora, quase todas, me deparei com a percussividade da minha cidade e do meu lugar, e quis ser groove e tambor também. Tudo que eu bebi até agora ainda incide no que tenho a dizer.
4. O disco tem muitos elementos eletrônicos, mas a percussão e principalmente as cordas – do violão e outras – estão ali como guia das canções. Essa escolha foi consciente, ou é parte do seu processo de composição…?
Eu sigo a filosofia de que a música se transforma. Hoje temos a tecnologia e eu converso com ela. Minha intenção na produção desse disco foi trazer o amargor que precisava com todos os instrumentos de corda e pele, madeira, violão, violoncelo, bateria acústica, e a atualidade vem com os synths, o sub bass, os snares, padrões de hihat, e as novas formas de interpretar a construção de um beat. Pra mim é muito importante essa interação, vejo o futuro da música e acho lindo.
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Julianna Sá
Ela mexe com música, e deixa a música mexer com ela. Jornalista, curadora, pesquisadora musical, a&r de selo independente, ex-eterna radialista e curiosa incurável (ou só alguém com lua e sol em sagitário), esmiúça a música brasileira contemporânea de perto.