Cíntia Ribeiro: “Desordem e retrocesso”

Minha alma canta com Cíntia Ribeiro
15:57 07.09.2024
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Minha alma canta com Cíntia Ribeiro

Escritora e comunicadora, autora de "De fora para dentro"
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Cíntia Ribeiro: “Desordem e retrocesso”

Mais que celebrar, precisamos refletir sobre amizade, palavra, respeito, caráter, bondade, alegria e amor.

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- 07.09.2024 - 15:57
Cíntia Ribeiro: “Desordem e retrocesso”
Imagem: Freepik

Uma notícia séria paralisa os brasileiros às vésperas deste 7 de setembro, deixando a impressão de que há pouco a comemorar como nação no dia da Independência de nosso país.

Após acusações de assédio sexual, é demitido Silvio Almeida, o então Ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil, depois de negar veementemente a veracidade das denúncias pelas quais será investigado. Entre as mulheres denunciantes está a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco.

Enquanto isso, multiplicam-se nas redes sociais os “especialistas” políticos, criminalistas e juízes alheios. Posicionar-se nessas horas vira “lei”. Tomar partido parece obrigatório. Visões binárias começam a aparecer, num esquema “fla-flu”, em que um lado vence e outro precisa ser derrotado.

Acontece que, com isso, perdemos todos – independentemente do resultado da investigação.

Fica exposta uma espécie de rachadura num importante vitral construído com o sangue e o suor do ativismo antirracista brasileiro.

“Quando uma violência é sofrida por uma mulher, todas sofrem. Mas quando isso acontece com a nossa comunidade da maneira como aconteceu nas últimas 24 horas é um soco na alma” – publicou a atriz Taís Araújo em seu perfil pessoal.

Para não entrar numa discussão que não me cabe, visto que meu lugar de fala é de privilegiada e opressora branca, busco refletir onde esse soco reverbera em minha alma. Essa, que insiste em cantar. A mesma que, infelizmente, compõe as estatísticas de mulher que já sofreu abusos.

É desse ângulo que meu estômago hoje embrulha. Assim, a voz sai meio embargada, baixa, presa… e vai dando lugar a um grito rasgado de inconformismo até chegar, neste texto, a um “acorde!” que me ajude a retomar o ar.

Jamais pensei que seria vítima de qualquer tipo de violência sexual – ainda que tivesse decorado o “manual de sobrevivência feminino”, com dicas práticas do que fazer caso um dia acontecesse comigo: juntar os cacos da dignidade estraçalhada, buscar segurança e denunciar o agressor.

Mas essa é a cartilha. Na prática, no instante exato em que o chão desaparece e temos corpos e individualidades invadidos, qualquer teoria dá lugar ao pavor. No meu caso, seguido de nojo, ódio, vergonha, indignação. E medo, sempre ele.

Depois de bastante terapia e acompanhamento profissional, comecei a compartilhar minha vivência com uma rede próxima de amigas. Para a minha surpresa, quase todas tinham uma história parecida de violência sexual – ou abuso, ou assédio ou importunação. Mas o que mais me espantou é que nunca havíamos trocado sobre essas experiências, mesmo em círculos íntimos de amizade.

Desde então, tenho buscado ampliar o debate para quebrar esse tabu. Nenhum tipo de violência pode ser normalizado. 

No ano passado, batemos o recorde de feminicídios no país, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que analisa registros de feminicídios desde 2015, quando o crime foi tipificado no Código Penal Brasileiro. Estamos falando de 1.463 mulheres assassinadas em 2023 devido à sua condição feminina.

Precisamos falar disso entre mulheres. E também dentro de casa, nas rodas de amigos, nas escolas, nas corporações, em todo tipo de instituição onde haja… pessoas.

“Pois não posso, não devo
Não quero viver como toda essa e insiste em viver
Não posso aceitar sossegado
Qualquer sacanagem ser coisa normal”

Hoje minha alma procura cantar algum tipo de esperança. E, na dúvida, para não errar, busco esse amparo aqui dentro. Neste velho conhecido chamado “eu”. Ou “coração”, para os íntimos.

Ontem, enquanto acompanhava as notícias entristecida, dancei com minha filha no Festival Coala. E lá, no escuro do auditório do Memorial da América Latina, chorei ao lembrar que “há um menino, há um moleque morando sempre no meu coração. Cada vez que o adulto fraqueja ele vem pra me dar a mão”.

Hoje abraço esse menino. Resgato essa criança que representa o humano, em mim. Em nós. 

Na Psicologia Analítica, segundo Jung, o arquétipo “Puer” retrata na psique coletiva esse aspecto livre, criativo, brincalhão, curioso, aberto. Pelo menos é isso que minha analista disse na última sessão, enquanto me incentivava a notar esse aspecto às vezes um pouco negligenciado, em mim.

No dia em que se comemora a Independência do nosso país, ainda que haja tanto a avançar na compreensão decolonial e nas lutas para desconstrução de estruturas sociais tóxicas como a misoginia, quero me lembrar dessas “coisas bonitas que eu acredito que não deixarão de existir: amizade, palavra, respeito, caráter, bondade, alegria e amor”.

Sem amor, o que teremos é desordem e retrocesso.

Veja também:

Minha alma canta:

“Bola de meia, bola de gude”, de Fernando Brant e Milton Nascimento

Há um menino, há um moleque

Morando sempre no meu coração

Toda vez que o adulto balança ele vem pra me dar a mão

Há um passado no meu presente

O sol bem quente lá no meu quintal

Toda vez que a bruxa me assombra o menino me dá a mão

E me fala de coisas bonitas

Que eu acredito que não deixarão de existir

Amizade, palavra, respeito, caráter, bondade, alegria e amor

Pois não posso, não devo

Não quero viver como toda essa gente insiste em viver

Não posso aceitar sossegado

Qualquer sacanagem ser coisa normal

Bola de meia

Bola de gude

Um solidário não quer solidão

Toda vez que a tristeza me alcança um menino me dá a mão

Há um menino, há um moleque morando sempre no meu coração

Toda vez que o adulto fraqueja ele vem pra me dar a mão

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