
O que foi o Movimento Armorial? A arte nordestina que vestiu o erudito com roupa de cordel
O que foi o Movimento Armorial? A arte nordestina que vestiu o erudito com roupa de cordel
Nos anos 1970, Ariano Suassuna uniu rabeca, barroco e imaginação popular para criar um Brasil profundo e sofisticado de dentro para fora.


Em vez de ouvir violinos e pianos ao entrar numa sala de concerto, era o som de uma rabeca do sertão que ocupava o local. Em vez de óperas italianas, um aboio de vaqueiro. Ao fundo, uma tapeçaria bordada com brasões que misturam cavalos alados, corações sagrados e folhagens nordestinas.
Foi esse o choque e a beleza que Ariano Suassuna propôs ao Brasil em 1970, quando lançou o Movimento Armorial. Uma espécie de revolução estética, nascida em Recife, que queria mostrar que o popular também pode ser nobre. Que o cordel pode dialogar com Bach. Que o barroco do interior tem tanta sofisticação quanto os salões da Europa.
O Armorial foi um movimento artístico, um gesto político e poético: transformar o que sempre foi visto como “arte menor” em matéria-prima para uma arte erudita com sotaque brasileiro.
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A faísca no mangue: o nascimento do Armorial
Tudo começou em uma noite de outubro de 1970. A Igreja de São Pedro dos Clérigos, em Recife, estava cheia. No altar, uma orquestra inédita: formada por músicos com rabeca, pífano e viola caipira, tocando composições de câmara inspiradas nos sons do sertão. Enquanto isso, ao redor, gravuras, tapeçarias e esculturas assinadas por artistas nordestinos tomavam as paredes. Era o nascimento do Movimento Armorial.

Ariano, então professor da Universidade Federal de Pernambuco, batizou essa proposta com um nome que remetia à era medieval: “armorial” como os brasões, os símbolos das antigas famílias , mas com um coração sertanejo. A ideia era fazer uma arte brasileira erudita com base nas raízes populares.
Literatura, música e imagem: as três colunas do Armorial
A pedra fundamental da literatura armorial foi lançada por Ariano em 1971, com o livro “Romance d’A Pedra do Reino”. Logo na capa, ele já avisava: era um “romance armorial-popular brasileiro”. Um épico nordestino que misturava o real e o mítico, com linguagem barroca, personagens saídos dos cordéis e uma pegada quase delirante. Era literatura que dançava entre o sertão e os castelos medievais.

Mas a literatura armorial não parava em Ariano. Surgiram folhetos, peças de teatro, autos religiosos e narrativas das tradições orais.
Música
Sob a batuta de maestros como Clóvis Pereira e com grupos como o Quinteto Armorial, surgiram composições que pareciam traduzir o Nordeste em som: havia frevo e fandango, mas tudo com estrutura de concerto. Tocava-se rabeca como se fosse Stradivarius, com peças compostas especialmente para instrumentos populares em diálogo com a música clássica.

A plateia era levada de um repente para uma fuga barroca. Os músicos explicavam as origens de cada ritmo, resgatavam danças de reisados e transformavam cantigas de roda em suítes sinfônicas.
Gravuras e tapeçarias
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Gilvan Samico, um dos nomes centrais do moviment criou xilogravuras de traços fortes e míticos: cobras, pássaros, vaqueiros e mulheres-lua se entrelaçavam em composições que pareciam saídas de sonhos antigos.

Francisco Brennand, com suas esculturas e cerâmicas, misturava o sacro e o profano em obras que lembravam templos imaginários. Lourdes Magalhães, Zélia Suassuna, Aluísio Braga tambémderam rosto, cor e textura ao movimento, com tapeçarias, desenhos e objetos que carregavam o Nordeste nos detalhes: um girassol de barro, uma estrela de ferro batido, um bordado de cobra enrolada em cacto.
Artistas que ergueram o Brasil armorial
- Ariano Suassuna: o maestro invisível do movimento. Suassuna idealizou o Armorial e o encarnou em cada livro, aula e entrevista. Defendia que o Brasil devia “olhar para dentro” e encontrar grandeza no próprio povo.
- Gilvan Samico: transformou a xilogravura popular em arte de galeria. Suas imagens dialogam com o inconsciente coletivo do sertão.
- Clóvis Pereira: compositor que deu corpo à música armorial, unindo técnica clássica e emoção nordestina.
- Antônio Nóbrega: o corpo e a voz do movimento. Começou no Quinteto Armorial e depois expandiu a proposta em espetáculos solo que misturam dança, música e poesia.
- Francisco Brennand: escultor visionário, levou o Armorial ao tridimensional com seu universo de cerâmicas mágicas e barrocas.

Mulheres do Armorial
Apesar do foco frequentemente dado aos homens do movimento, o Armorial também contou com o trabalho e a visão de mulheres que transformaram tapeçarias em brasões nordestinos e bordados em narrativas mitológicas.

Zélia Suassuna, com suas telas e tecidos, costurava o cotidiano nordestino em imagens líricas e cheias de fé. Lourdes Magalhães, tapeceira de imaginação vívida, tingia figuras míticas em fios que contavam histórias de encantamento. E nomes como Ana Letícia Falcão contribuíram para ampliar os caminhos visuais do Armorial, levando seus signos para novas superfícies.

Um Brasil entre o barroco e o baião
O Movimento Armorial teve importância real para o Brasil porque propôs um novo jeito de valorizar a cultura popular: não como curiosidade ou folclore distante, mas como base legítima para uma arte erudita brasileira.
Ao reunir música, literatura e artes visuais com referências do sertão, da religiosidade popular e da tradição oral, o movimento ajudou a mostrar que o Brasil tem suas próprias formas de sofisticação e que elas não precisam copiar modelos estrangeiros para ter valor.
Hoje, mais de 50 anos depois, o Armorial continua influenciando artistas, músicos e educadores. Ainda inspira quem busca criar a partir das próprias raízes. E, num tempo em que tantas culturas locais são apagadas ou ignoradas, lembrar do Armorial é também lembrar da importância de olhar para dentro e reconhecer a riqueza que existe nos saberes, sons e imagens do nosso próprio território.