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Maria Rezende: “Descolonizando afetos: lucidez é liberdade”

Literatura feminista com Maria Rezende
16:12 15.10.2024
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Literatura feminista com Maria Rezende

Escritora feminista
Arte e cultura

Maria Rezende: “Descolonizando afetos: lucidez é liberdade”

Geni Nuñez reflete sobre a monogamia como fator estruturante da nossa sociedade

Novabrasil - 15.10.2024 - 16:12
Maria Rezende: “Descolonizando afetos: lucidez é liberdade”
Foto: Divulgação.

Sei que muitas pessoas têm arrepios de pavor só de ouvir o termo “não
monogamia” – NM para os íntimos. O entendimento comum é de que essa
seria uma forma de legitimar a infidelidade ou de não ter comprometimento
afetivo com ninguém.

O trabalho de Geni Nuñez vai na contramão dessas crenças, e tem o poder de iluminar o que essa prática realmente propõe. Geni entrou na minha vida pelas redes sociais, com seu perfil @genipapos.

Já fazia tempo que eu andava curiosa com a pauta. Eu, mulher hétero cis
que sempre tive relacionamentos monogâmicos, via cada vez menos sentido
em igualar lealdade à fidelidade. Resumir parceria à exclusividade.

Entregar meu corpo e meu desejo numa caixa dourada com laço de fita na mão de
outra pessoa, e pedir que ela fizesse o mesmo, já não fazia mais sentido pra
mim. Ter mais de uma relação ao mesmo também não.

E aí? Dentre tantos perfis debatendo o tema, muitos impondo outras regras e réguas de comportamento, as provocações de Geni surgiram como um bálsamo.

Interessantes e desconcertantes, perguntando mais do que respondendo.
“Uma pessoa ser não monogâmica significa simplesmente que ela não
terceiriza decisões sobre seu próprio corpo, de maneira que ela pode usar
sua liberdade de escolha inclusive para não se relacionar sexualmente com
ninguém.

É preciso questionarmos, portanto, essa idéia de que a liberdade está sempre ligada a um grande sim a tudo. Pelo contrário, a liberdade também pode ser sobre nossos nãos, desde que próprios, autorais.”, afima Geni. “Muito dizem que “o combinado não sai caro”, mas vemos que tem saído, sim, muito cara essa conta.

Nem tudo que é combinado é ético, e terceirizar os direitos ao próprio corpo deveria ser um exemplo disso.” Uau. Pensamentos como esse me remexeram e sua filosofia de “artesania dos afetos” passou a fazer mais e mais sentido para mim.

Não sei se o que me ganhou foi a abordagem histórica e resgate da cultura guarani que ela, mulher indígena, traz. Talvez tenha sido a forma sempre poética de
questionar nossas certezas, ou seu conhecimento profundo da alma
humana, resultado do somatório de suas próprias experiências ao seu
trabalho como psicóloga e doutora em Ciências Humanas pela UFSC.

Ao longo dos anos eu li e salvei seus posts, debati com amigos e amores, e tive
ainda o privilégio de fazer seu curso sobre não monogamia sob a ótica nada
óbvia da colonização, remexendo com crenças arraigadas, medos e
preconceitos.

Por isso meu olho brilhou quando em outubro de 2023 a Editora Planeta
lançou seu primeiro livro, Descolonizando afetos – experimentações
sobre outras formas de amar. Eu o devorei de imediato – curiosamente ao
invés de comprar um exemplar, li o do meu namorado, parceiro que compartilha minhas inquietações e admiração pelo trabalho de Geni.

O livro aprofunda o debate das redes sociais de forma brilhante, trazendo muita
informação e pensamento inovador em linguagem simples e coloquial, como
uma conversa.

A autora abre trazendo dados históricos que desmistificam o senso comum de que discordar da monogamia seria um comportamento moderninho e atual: “Quando os missionários chegaram aqui, ficaram obcecados por erradicar as não monogamias indígenas, porque compreenderam que sem a adesão à monogamia não seria possível realizar o batismo, e sem o batismo todo o sucesso da obra missionária ficaria comprometido.

As relações indígenas não se guiavam pela indissolubilidade do vínculo e também por isso não era categorizadas como monogâmicas, ainda que fossem compostas de apenas duas pessoas.

Mais do que uma questão de quantidade, a imposição da monogamia fazia parte de todo um projeto civilizatório que buscava incutir a moral cristã como única possível.

Se nos voltamos às características desse deus, percebemos que ele só se
sente amado se é amado em caráter único, o que é exatamente o principal
preceito da monogamia: a não concomitância de relações românticas como
critério de fidelidade.”

A partir desse resgate histórico, Geni traz para pauta as implicações sociais
e políticas da adoção da monogamia como sistema. Confesso que nunca
tinha me ocorrido questionar o fato de que é possível incluir no plano de
saúde um parceiro afetivo-sexual, mas não uma grande amiga da vida
inteira.

Que somente a um cônjuge é permitido herdar a previdência do INSS
em caso de morte, fazendo com que uma pessoa solteira ou em relação
estável com mais de um parceiro não possa decidir a quem direcionar uma
renda que deveria ser sua por direito. “A imposição jurídica da monogamia
está diretamente relacionada ao direito à propriedade, à previdência, à
pensão.

Ao impor a monogamia, o Estado Brasileiro fere o princípio da laicidade.” Parece radical, mas se a gente para para pensar é mesmo assim: a moral e a ética religiosa estruturando toda a sociedade. Geni também coloca o dedo na ferida do machismo, nos lembrando que a estrutura monogâmica muitas vezes romantiza o trabalho de cuidado não remunerado que sempre cabe às mulheres, além de reforçar desigualdades.

“Não é possível pensar uma desconstrução de fato das relações sem pensar em
família, heteronorma, maternidade e paternidade. Crescemos escutando
frases como “Não se separe, quer que seus filhos cresçam sem pai?” É
como se junto do lugar de ex-esposa houvesse um lugar de ex-filhos.

Mas mesmo quando esses homens se mantém na relação, qual a qualidade da
sua presença? Infelizmente, a displicência estrutural do machismo
raramente é narrada como “traição” ou falta de responsabilidade (afetiva,
econômica, política). Apenas o ato de beijar outra pessoas é nomeado pela
sociedade como traição nas manchetes.”

Outro senso comum que ela desconstrói é de que a não monogamia seria
uma escolha para as pessoas “padrão”, jovens, bonitas e de grandes
centros. Em suas palavras: “Há ainda quem diga que ‘quem é desconstruído
é privilegiado’.

Essa é outra inversão. Nós, pessoas indígenas, negras, mulheres, pessoas trans, com deficiência etc, lutamos contra o racismo, o machismo, a transfobia e o capacitismo justamente porque esses sistemas são opressivos contra nós. Como diz bell hooks, a teoria para nós pode ser uma forma de cuidado. Opressões têm a ver com poder e hegemonia, não com mérito de beleza, inteligência ou qualquer outro atributo.

Nosso valor no mundo não deveria estar consignado ao olhar do amor romântico.”
A politização da pauta, para além das escolhas individuais que acreditamos
fazer, também é a tônica do trabalho da autora catalã Brigitte Vassalos, que
em seu incrível O desafio poliamoroso diz “O sistema monogâmico é uma
engrenagem que distribui privilégios a partir dos vínculos afetivos e um
sistema de organização desses vínculos. ”

A leitura de Geni me remeteu muitas vezes ao livro de Vassalos, e está evidente que não fui a única a fazer essa associação, já que a mesa reunindo as duas foi uma das atrações mais comentadas da última FLIP, na qual aliás Geni foi a autora mulher campeã de vendas.

“Uma das mentiras que o capitalismo, filho da colonização, nos conta é a de
que só seremos amadas/os/es, cuidadas/os/es e respeitadas/os/es se
formos a melhor pessoa, a mais importante, a mais inteligente, a mais bonita
etc. (com todos os critérios arbitrários que a idéia de ser melhor traz). Para
lidar com essas angústias não precisamos de mais reforço à hierarquia, mas
justamente de acolhimento à nossa pequenez.

Não sendo a pessoa mais linda de todas, nem a mais inteligente, mas justamente por isso, sendo apenas uma pessoa singular, única, irrepetível no mundo. A promessa de exclusividade não garante cuidado, afeto, e paradoxalmente, nem a própria exclusividade. A meu ver, é no cotidiano que o amor se faz, através dele é
que aferimos a qualidade e saúde de nossos vínculos, observando o tempero afetivo que se coloca no modo de fazer as coisas. O “também” não é pouca coisa.”

Pra mim Descolonizando afetos é leitura para pessoas casadas e solteiras,
para quem quer tentar se relacionar de forma diferente da que aprendeu que
teria que ser e para quem não quer nem imaginar viver isso.

É possível estar em uma relação monogâmica e ainda assim desejar ampliar seu entendimento do que isso quer dizer e das implicações que esse modelo
tem em nossa cultura. Liberdade pressupõe lucidez, e isso Geni nos oferece de sobra.

Descolonizando afetos: experimentações sobre outras formas de amar
Geni Nuñez
Editora Paidós
192 páginas
Site para compra

Descrição: Atravessada pela poética de seu povo, a ativista indígena
Guarani, psicóloga e escritora Geni Núñez promove em Descolonizando
afetos um exercício de repensar a exclusividade nos relacionamentos
afetivos, partilhando reflexões anticoloniais sobre o tema, tanto do ponto de
vista histórico e macropolítico quanto em relação às nuances cotidianas e
interpessoais.

A partir de uma perspectiva original e com uma linguagem única, a autora desconstrói alguns dos equívocos mais comuns a respeito da não monogamia e desenvolve reflexões que podem servir de acolhimento a pessoas que desejam vivenciar outras formas de amar.

Mini bio:

GENI NÚÑEZ é ativista indígena Guarani, psicóloga e escritora. Atualmente,
é pesquisadora de pós-doutorado no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP). Tem doutorado no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestrado em Psicologia Social (UFSC) e graduação em Psicologia. É
membro da Comissão de Direitos Humanos (CDH), do Conselho Federal de
Psicologia (CFP) e coassistente da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY

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Maria Rezende é carioca de 78, poeta e performer de poesia, além de montadora audiovisual e celebrante de casamentos. Palavra escrita e falada andam juntas em seu trabalho. Tem seis livros publicados e já viajou com seus espetáculos pelo Brasil, Argentina, Portugal e Espanha. www.mariadapoesia.com

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