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‘Cinema Novo Brasileiro’: saiba o que é e como ele influenciou a MPB

Lívia Nolla
15:03 02.10.2024
Autor

Lívia Nolla

Cantora e Pesquisadora Musical
Música

‘Cinema Novo Brasileiro’: saiba o que é e como ele influenciou a MPB

Em entrevistas, Caetano Veloso frequentemente menciona a influência de Glauber Rocha e do Cinema Novo em sua obra. Veja especial do site da Novabrasil

Lívia Nolla - 02.10.2024 - 15:03
‘Cinema Novo Brasileiro’: saiba o que é e como ele influenciou a MPB
Caetano Veloso. Foto: Divulgação.

O Cinema Novo Brasileiro foi um movimento que revolucionou a cinematografia nacional nas décadas de 1960 e 1970.

Inspirado por correntes cinematográficas internacionais, como o neorrealismo italiano e a Nouvelle Vague francesa, o Cinema Novo trouxe um olhar crítico e esteticamente inovador sobre o Brasil. 

Mas o que realmente define esse movimento e quais são seus principais filmes e cineastas? 

Vamos explorar tudo isso e ainda entender como o Cinema Novo deixou um legado duradouro na cultura brasileira, influenciando – inclusive – a nossa música popular brasileira, principalmente por meio de Caetano Veloso e da Tropicália.

O surgimento e os princípios do Cinema Novo

O Cinema Novo surgiu em um período de intensa efervescência cultural e política no Brasil, durante os anos 1960 e 1970. Nesse contexto, o país vivia um momento de industrialização, urbanização e profundas transformações sociais, mas também enfrentava sérios desafios, como a desigualdade social, a pobreza extrema e o analfabetismo. 

O movimento cinematográfico nasceu como uma resposta artística e política a essas realidades, com o objetivo de retratar o Brasil de forma autêntica, crítica e inovadora. Seus principais princípios eram a denúncia das injustiças sociais, a busca por uma identidade cultural brasileira e a construção de uma linguagem cinematográfica própria. 

Influenciado pelo neorrealismo italiano e pela Nouvelle Vague francesa, o Cinema Novo valorizava a experimentação estética, a narrativa ousada e o compromisso com a realidade social do país.

O lema “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” sintetizava o espírito do movimento: filmar com poucos recursos, mas com grande inventividade e consciência crítica.

Características estéticas do Cinema Novo

Cena do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, Glauber Rocha (1964) \ Imagem: Reprodução / Produções Cinematográficas Herbert Richers

O Cinema Novo trouxe uma estética visual marcante, que refletia sua visão de mundo e seu compromisso com a realidade brasileira. Entre as principais características estão:

  • Câmera na mão: Os cineastas do Cinema Novo utilizavam a câmera de forma ágil e dinâmica, muitas vezes com planos irregulares e ângulos inusitados. Essa técnica conferia um tom documental às cenas, aproximando o espectador da realidade retratada.
  • Luz natural e locações reais: Em vez de estúdios, os filmes eram frequentemente gravados em ambientes naturais, como favelas, sertões e ruas das cidades. A utilização de luz natural reforçava o realismo das produções e contrastava com a artificialidade do cinema comercial da época.
  • Cores vibrantes e contrastes marcantes: Embora muitos filmes do Cinema Novo tenham sido rodados em preto e branco, a estética do movimento também se destacava pelo uso expressivo das cores, quando disponível, e pelos contrastes intensos, que destacavam a dramaticidade das cenas e o contexto social dos personagens.

Essas técnicas não apenas diferenciavam o Cinema Novo esteticamente, mas também simbolizavam a busca por uma representação mais autêntica do Brasil.

Cineastas importantes do Cinema Novo

Glauber Rocha | Foto: Reprodução

Glauber Rocha

Considerado o principal nome do movimento, Glauber Rocha foi o responsável por obras fundamentais como Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe. Suas produções combinavam linguagem poética e crítica política, com uma estética inovadora e simbolismos complexos. Glauber se tornou uma referência mundial, sendo aclamado por sua visão revolucionária e seu estilo único de fazer cinema.

Nelson Pereira dos Santos

Nelson Pereira (esq.) e o filho Ney Santanna (dir.), nos bastidores de mais uma filmagem | Foto: Reprodução

Pioneiro do Cinema Novo, Nelson Pereira dos Santos dirigiu filmes essenciais como Rio, 40 Graus e Vidas Secas. Com um olhar atento às questões sociais e uma abordagem documental, ele foi um dos primeiros a retratar a vida nas periferias e no sertão brasileiro. Sua obra é marcada pelo realismo e pela sensibilidade ao tratar dos problemas sociais do país.

Cacá Diegues

Cacá Diegues | Foto: Reprodução

Cacá Diegues é outro nome importante do movimento, com filmes como Ganga Zumba e Xica da Silva. Seus trabalhos se destacam pela exploração da cultura afro-brasileira e pela crítica ao racismo e à exploração social. Diegues também foi um dos fundadores do Cinema Novo, contribuindo para a construção de uma identidade cinematográfica brasileira.

Leon Hirszman

Leon Hirszman | Foto: Reprodução

Leon Hirszman dirigiu filmes como São Bernardo e Eles Não Usam Black-Tie, trazendo uma perspectiva crítica sobre as relações de poder e a luta de classes no Brasil. Seu cinema é marcado pelo rigor estético e pela profundidade dos temas abordados, sempre com um olhar sensível para as contradições da sociedade brasileira.

O impacto do Cinema Novo na cultura brasileira

Cena de Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos (1963) | Imagem: Reprodução

O Cinema Novo teve um papel fundamental na conscientização política da população, ao abordar de forma inédita as desigualdades sociais e as contradições do Brasil. Suas obras não se limitavam a contar histórias, mas buscavam provocar reflexão e debate, confrontando o espectador com realidades muitas vezes invisibilizadas pelo cinema comercial.

Além disso, o movimento contribuiu para a formação de uma nova geração de cineastas e críticos, que passaram a ver o cinema como um instrumento de transformação social. O legado do Cinema Novo se estende até hoje, influenciando a produção cinematográfica contemporânea e mantendo viva a busca por um cinema que retrate o Brasil com autenticidade e profundidade.

O Cinema Novo e o cinema contemporâneo

Direita: Bruno Barreto, Cacá Diegues, Arnaldo Jabor e Glauber Rocha. Esquerda: Rocha dirigindo Deus e o Diabo na Terra do Sol | Imagem: Reprodução / Plano Crítico

Os princípios e estéticas do Cinema Novo deixaram uma marca profunda no cinema brasileiro contemporâneo. Filmes como Cidade de Deus e O Som ao Redor trazem elementos que remetem ao movimento, como a representação crítica da realidade social e a experimentação formal. 

Além disso, muitos cineastas contemporâneos continuam a explorar temas como a desigualdade e a violência, dialogando com o legado deixado pelo Cinema Novo.

Se antes o Cinema Novo buscava uma linguagem cinematográfica própria, hoje vemos uma diversificação dessa linguagem, com novas vozes e narrativas que ampliam ainda mais a visão do Brasil e suas complexidades.

Principais filmes do Cinema Novo

O Cinema Novo produziu obras que são marcos do cinema brasileiro e mundial. Esses filmes, além de refletirem os princípios do movimento, também se tornaram referências culturais e artísticas. Vamos explorar algumas das principais produções:

Cinco Vezes Favela (Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Cacá Diegues, Miguel Borges e Marcos Farias, 1962)

O filme é uma coletânea de cinco episódios dirigidos por diferentes cineastas, todos então jovens e estreantes. Cada episódio aborda questões sociais e retrata a vida nas favelas do Rio de Janeiro, oferecendo um olhar inovador e crítico sobre a realidade brasileira, em consonância com os princípios do movimento. O projeto foi coordenado por Leon Hirszman e se destacou por sua abordagem realista e social, característica do Cinema Novo, além de ter sido um marco por trazer à tona novos talentos e uma nova forma de fazer cinema no Brasil.

Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963)

Baseado no romance de Graciliano Ramos, Vidas Secas é uma representação poderosa da vida no sertão nordestino. O filme retrata a saga de uma família de retirantes, explorando a seca, a miséria e a opressão social. A narrativa seca e direta, combinada com a estética austera, faz de Vidas Secas um dos maiores expoentes do Cinema Novo.

Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964)

Com uma linguagem simbólica e uma estética agressiva, Deus e o Diabo na Terra do Sol é um manifesto visual e poético do Cinema Novo. O filme aborda o fanatismo religioso e a violência no sertão, utilizando metáforas e imagens impactantes para discutir a complexidade da realidade brasileira.

Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967)

Uma crítica feroz à política e à corrupção, Terra em Transe explora a decadência de um fictício país latino-americano. O filme é uma alegoria do Brasil e da América Latina durante os anos 1960, refletindo a tensão política e social da época. Com uma narrativa fragmentada e intensa, é um dos trabalhos mais ousados de Glauber Rocha.

Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969)

Adaptação do clássico de Mário de Andrade, Macunaíma é uma sátira irreverente sobre o Brasil. Misturando elementos de comédia, crítica social e fantasia, o filme retrata a jornada de um anti-herói que simboliza as contradições do país. A estética colorida e a narrativa anárquica fazem de Macunaíma uma obra única dentro do Cinema Novo.

Outros filmes que também merecem destaque são: O Desafio (Paulo César Saraceni), que discute as tensões políticas do período; O Padre e a Moça (Joaquim Pedro de Andrade), uma poética narrativa sobre amor e repressão; e Os Fuzis (Ruy Guerra), que aborda a violência e a luta pela sobrevivência no sertão.

O Cinema Novo e a obra de Caetano Veloso

Capa do disco Tropicália, de Caetano Veloso (1968)

O Cinema Novo exerceu uma influência profunda na obra de Caetano Veloso, especialmente durante o período de efervescência cultural e política que culminou na Tropicália, movimento do qual Caetano foi um dos principais expoentes. 

Assim como os cineastas do Cinema Novo, Caetano buscava uma linguagem artística que fosse ao mesmo tempo brasileira e universal, explorando as contradições e complexidades do país.

Em suas músicas, Caetano absorveu e reinterpretou as inovações estéticas e temáticas do Cinema Novo. Canções como Tropicália e Alegria, Alegria são repletas de imagens cinematográficas e referências que dialogam diretamente com o universo de Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e outros cineastas do movimento. 

A ideia de antropofagia cultural, central tanto na Tropicália quanto no Cinema Novo, é evidenciada na forma como Caetano mesclou diferentes estilos musicais e elementos da cultura de massa com a crítica social, em uma espécie de colagem sonora que reflete a multiplicidade e o caos da realidade brasileira.

Glauber Rocha, em especial, foi uma referência constante para Caetano. O próprio Glauber aparece como personagem em algumas canções, e a parceria entre os dois artistas se consolidou em várias ocasiões, como no documentário Tropicália, onde Glauber narra o exílio de Caetano e Gilberto Gil durante a ditadura militar. 

Em entrevistas, Caetano frequentemente menciona a influência de Glauber e do Cinema Novo em sua obra, destacando como a visão crítica e a estética revolucionária dos filmes do movimento inspiraram suas composições.

Além disso, o espírito de contestação e experimentação do Cinema Novo pode ser visto em discos como Tropicália ou Panis et Circencis e Transa. Nesses trabalhos, Caetano utiliza a música como um veículo para questionar a realidade social e política do Brasil, assim como os cineastas do Cinema Novo faziam com seus filmes. 

A forma fragmentada, por vezes desconstruída, das composições de Caetano ecoa o estilo narrativo dos filmes do movimento, que também rompem com as convenções tradicionais do cinema e da narrativa.

Portanto, a influência do Cinema Novo na obra de Caetano Veloso vai além das referências diretas: é uma inspiração estética e filosófica que permeia sua música e sua visão artística.

 Assim como os cineastas buscavam uma linguagem própria para retratar as complexidades do Brasil, Caetano utiliza a música para refletir e transformar essa realidade, mantendo vivo o legado inovador e provocador do Cinema Novo na cultura brasileira.

O Cinema Novo foi mais do que um movimento cinematográfico: foi uma revolução cultural que trouxe novas perspectivas e vozes para o cinema brasileiro e para a cultura brasileira como um todo. 

Com uma estética própria e um compromisso com a realidade social, os cineastas desse movimento criaram obras que permanecem relevantes e inspiradoras até hoje. Sua influência se estende ao cinema contemporâneo, mantendo viva a busca por um cinema que seja, acima de tudo, uma expressão verdadeira do Brasil e de seu povo.

por Lívia Nolla

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Lívia Nolla é cantora, apresentadora e pesquisadora musical

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