
Sem atrito, sem movimento: a sociedade e sua busca pelo “par perfeito” digital


Mauricio Mansur
Diretor de mkt e inovação, conselheiro e palestrante
Sem atrito, sem movimento: a sociedade e sua busca pelo “par perfeito” digital
Aplicativos como Talkie e Character.AI oferecem interações sem atritos, mas será que a perfeição sem desafios realmente nos ajuda a crescer?

Imagina um mundo onde as discussões no grupo da família são substituídas por respostas fofas e compreensivas de um chatbot. Onde seu “par perfeito” nunca esquece o aniversário de namoro, porque, bem, ele é literalmente programado para isso. Parece tentador, né? Essa é mais ou menos a proposta de aplicativos como o Talkie e o Character.AI, que já está há mais tempo no mercado.
O Talkie, queridinho dos jovens americanos, permite conversas íntimas com personagens fictícios ou versões “genéricas” de celebridades (eles até imitam os famosos, mas sem usar vozes parecidas — talvez para evitar polêmicas, como a confusão do ChatGPT com a voz da Scarlett Johansson). A ideia é simples: criar interações agradáveis, sem atritos, sem DRs, sem aquele climão de “precisamos conversar”.
Mas é aí que mora o problema. Estamos nos acostumando a viver em bolhas onde o confronto de ideias, as divergências e até aquele “clique” de tensão saudável estão desaparecendo. Sem atrito, gente, não há movimento. Não há crescimento. É a lei da física e, talvez, da vida também.
E o Talkie? Ele bombou no começo do ano, crescendo de 4 milhões para 28 milhões de usuários em dois meses nos EUA. Mas como nem tudo são flores no mundo digital, a febre deu uma esfriada e agora gira em “apenas” 22 milhões de usuários mensais. O motivo? Talvez as pessoas tenham percebido que a perfeição sem desafio perde a graça.
O próximo passo para tornar as interações ainda mais “reais” é apostar em vídeos gerados por IA. Além disso, a empresa está mirando um público mais velho e com grana no bolso, porque adolescente apaixonado por chatbot não paga as contas.
Esses apps estão moldando – ou talvez refletindo – uma sociedade que prefere evitar conflitos a enfrentá-los, mesmo que isso signifique abrir mão de relações verdadeiras. Afinal, o que é uma relação sem a faísca das diferenças? É como andar de bicicleta na descida: sem pedalada, você não vai muito longe.
E, ó, não estou dizendo que a tecnologia é o vilão da história. Muito pelo contrário! Sou um entusiasta da tecnologia de forma geral e da IA especificamente. Ela tem o potencial de enriquecer nossas vidas de formas incríveis. Mas, se nos cercarmos apenas de “pessoas” que nunca nos desafiam, corremos o risco de nos transformar em versões pasteurizadas de nós mesmos.
Então, antes de se render ao conforto de um chatbot que te chama de “amor” sem reclamar da toalha molhada na cama, pensa no que realmente te faz crescer. Às vezes, aquele atritozinho básico é o empurrão que você precisa para sair do lugar. Afinal, a vida não é feita só de suavidade — e isso é bom demais.
Gilberto Gil e João Gomes celebram 25 anos do Grammy Latino em gravação
Trilhas sonoras de filmes: conheça as melhores do cinema brasileiro

Mauricio Mansur