
João Cabral de Melo Neto: principais poemas com análise e áudio-livro
João Cabral de Melo Neto: principais poemas com análise e áudio-livro
Entre a precisão dos versos e a crítica social, descubra como o poeta subverteu a literatura brasileira em um Brasil em mudança

Com um estilo calculadamente racional e uma economia de subjetividade, João Cabral de Melo Neto (1920–1999) nunca se propôs a falar sobre sua própria vida em seus poemas. Ainda assim, tinha uma vida interior conturbada, com o humor influenciado por uma dor de cabeça crônica e episódios de depressão.
O próprio João Cabral dizia que era na poesia que buscava organizar essa melancolia, que aumentou depois de um problema degenerativo na visão que o impedia de ler e escrever. Por essa razão, mais abaixo, junto às análises dos poemas, pesquisamos audiolivros para quem também gostaria de ouvir as obras desse grande poeta brasileiro.
Desinteresse na elite, gosto pelas letras
Nascido em Recife, em meio à elite açucareira, sua infância se desenrolou entre engenhos nas cidades de São Lourenço da Mata e Moreno. Inicialmente, João Cabral sonhava com os campos de futebol, foi considerado um craque em sua juventude, mas foi no universo das letras que encontrou sua verdadeira vocação.
O desinteresse por um lugar na elite pernambucana o levou a frequentar a cena intelectual do Recife, mas foi no Rio de Janeiro que sua trajetória literária começou a tomar forma – um caminho que o levaria a conhecer nomes como Carlos Drummond de Andrade.
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Em 1942, publicou A pedra do sono e marcou sua entrada no mundo da poesia. No entanto, quatro anos depois, optou pela carreira diplomática, o que lhe garantiu a estabilidade para se dedicar à escrita e a oportunidade de conhecer culturas diversas em postos no Reino Unido, França, Paraguai, Senegal, Portugal e, especialmente, Espanha, cenário que também inspirou suas obras.
Brasil em transição
A obra de João Cabral se desenrola em um cenário de intensas transformações sociais e políticas. O período pós-Segunda Guerra Mundial, marcado pelo avanço da industrialização, pela urbanização acelerada e pela agitação política – tanto no Brasil quanto no exterior – forneceu o pano de fundo para uma poesia que é, ao mesmo tempo, crítica e engajada.
Nas décadas de 1950 e 1960, o poeta incorporou em seus versos reflexões sobre a miséria, a desigualdade e a dura realidade do Nordeste brasileiro. Suas experiências na Espanha, sob o regime franquista, e o contato com as ideias marxistas contribuíram para a coloração social de obras como O Cão Sem Plumas (1950) e O Rio (1954).
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Essa postura crítica e a clareza quase engenheira na construção dos poemas, que mais se assemelha a um trabalho meticuloso do que a uma inspiração espontânea, o afastaram dos clichês da poesia lírica tradicional e o tornaram um precursor das vanguardas, com influência, inclusive, na poesia concreta.

Porém, a inserção de suas convicções políticas na arte não foi isenta de controvérsias: acusado, nos anos 1950, de integrar uma célula comunista no Itamaraty, João Cabral enfrentou um período conturbado. Ainda assim, seu trabalho ganhou reconhecimento estrondoso com a montagem de Morte e Vida Severina, que ganhou trilha sonora de Chico Buarque, e garantiu sua entrada na Academia Brasileira de Letras, em 1968.

Principais poemas
O Cão Sem Plumas (1950)
“A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.
O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.
Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.
Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos povos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.
Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes”.
Análise:
- Imagens e metáforas: Neste poema, a imagem do “cão sem plumas” serve para ilustrar a exclusão e a marginalidade. A metáfora é simultaneamente crua e poética e evidencia a realidade nua e dura das populações esquecidas.
- Inversão de lógica: existe uma inversão que subverte a lógica natural da paisagem. Ao sugerir que é a cidade que impõe seu traçado e domina o fluxo do rio, João Cabral ressalta o poder transformador e, muitas vezes, opressivo da urbanização sobre o ambiente natural.
É justamente dessa experimentação com a linguagem que emerge a beleza singular da poesia cabralina, convidando-nos a repensar as convenções e a perceber novas dimensões na interação entre o urbano e o natural.
- Crítica social: Ao retratar a marginalização com precisão, o poema expõe as contradições da sociedade urbana, com denúncias de indiferenças e desigualdades que marcam o cotidiano.
O Rio (1954) –
“Até este dia, usinas
eu não havia encontrado.
Petribu, Muçurepe,
para trás tinham ficado,
porém o meu caminho
passa por ali muito apressado.
De usina eu conhecia
o que os rios tinham contado.
Assim, quando da Usina
eu me estava aproximando,
tomei caminho outro
do que vi o trem tomar:
tomei o da direita,
que a cambiteira vi tomar,
pois eu queria a Usina
mais de perto examinar.
Vira usinas comer
as terras que iam encontrando;
com grandes canaviais
todas as várzeas ocupando.
O canavial é a boca
com que primeiro vão devorando
matas e capoeiras,
pastos e cercados;
com que devoram a terra
onde um homem plantou seu roçado;
depois os poucos metros
onde ele plantou sua casa;
depois o pouco espaço
de que precisa um homem sentado;
depois os sete palmos
onde ele vai ser enterrado.
Muitos engenhos mortos
haviam passado no meu caminho.
De porteira fechada,
quase todos foram engolidos.
Muitos com suas serras,
todos eles com seus rios,
rios de nome igual
como crias de casa, ou filhos.
Antes foram engenhos,
poucos agora são usinas.
Antes foram engenhos,
agora são imensos partidos.
Antes foram engenhos
com suas caldeiras vivas;
agora são informes
partidos que nada identifica.
Mas nas Usina é que vi
aquela boca maior
que existe por detrás
das bocas que ela plantou;
que come o canavial
que contra as terras soltou;
que come o canavial
e tudo o que ele devorou;
que come o canavial
e as casas que ele assaltou;
que come o canavial
e as caldeiras que sufocou.
Só na Usina é que vi
aquela boca maior,
a boca que devora
bocas que devorar mandou.
Na vila da Usina
é que fui descobrir a gente
que as canas expulsaram
das ribanceiras e vazantes;
e que essa gente mesma
na boca da Usina são os dentes
que mastigam a cana
que a mastigou enquanto gente;
que mastigam a cana
que mastigou anteriormente
as moendas dos engenhos
que mastigavam antes outra gente;
que nessa gente mesma,
nos dentes fracos que ela arrenda,
as moendas estrangeiras
sua força melhor assentam.
Por esta grande usina
olhando com cuidado vou,
que esta foi a usina
que toda esta mata dominou.
Numa usina se aprende
como a carne mastiga o osso,
se aprende como mãos
amassam a pedra, o caroço;
numa usina se assiste
à vitória, de dor maior,
de brando sobre o duro,
do grão amassando a mó;
numa usina se assiste
à vitória maior e pior,
que é a da pedra curta
furada de suor.
Para trás vai ficando
a triste povoação daquela usina
onde vivem os dentes
com que a fábrica mastiga.
Dentes frágeis, de carne,
que não duram mais de um dia;
dentes são que se comem
ao mastigar para a Companhia;
de gente que, cada ano,
o tempo da safra é que vive,
que, na braça da vida,
tem marcado curto o limite.
Vi homens de bagaço
enquanto por ali discorria;
vi homens de bagaço
que morte úmida embebia.
E vi todas as mortes
em que esta gente vivia:
vi a morte por crime,
pingando a hora da vigia;
a morte por desastre,
com seus gumes tão precisos,
como um braço se corta,
cortar bem rente muita vida;
via morte por febre,
precedida de seu assovio,
consumir toda a carne
com um fogo que por dentro é frio.
Ali não é a morte
de planta que seca, ou de rio:
é morte que apodrece,
ali natural, que visto.
Agora vou deixando
a povoação daquela usina.
Outra vez vou baixando
entre infindáveis partidos;
entre os mares de verde
que sabe pintar Cícero Dias,
pensando noutro engenho
devorado por outra usina;
entre colinas mansas
de uma terra sempre em cio,
que o vento, com carinho,
penteia, como se sua filha.
Que nem ondas de mar,
multiplicadas, elas se estendiam;
como ondas do mar de mar
que vou conhecer um dia.”
Análise:
- Fluxo e transformação: O rio, como símbolo, se apresenta como uma metáfora para o movimento incessante da vida e as mudanças sociais. A fluidez de seus versos contrasta com a rigidez das estruturas sociais.
- Dimensão existencial: O poema convida à reflexão sobre a passagem do tempo e a inevitabilidade da mudança, elementos que, na obra de João Cabral, são tratados com a mesma precisão que se aplica à descrição dos cenários naturais e humanos.
- Ritmo e imagem: A cadência dos versos evoca a constante movimentação das águas para demonstrar como a natureza pode ser simultaneamente bela e implacável, tal como as realidades que o poeta observava em sua terra.
Morte e Vida Severina (1955)
“— O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte Severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza”.
Análise:
- Estrutura e narrativa: Este poema, encomendado por Maria Clara Machado, é organizado como um auto de natal, que mistura elementos teatrais com a crueza do sertão. A montagem dramática realça o ciclo inevitável entre a morte e a esperança e retrata a luta constante dos retirantes em busca de dignidade.
- Temática social: A obra se tornou símbolo das condições adversas no Nordeste, como a miséria e a seca. A dualidade entre morte e vida reflete a realidade social, em que a violência e a resistência convivem lado a lado.
- Linguagem precisa: João Cabral emprega uma linguagem contida e econômica, cada palavra é escolhida com rigor para transmitir o peso dos acontecimentos e a força da esperança mesmo em meio à adversidade.
João Cabral de Melo Neto transformou sua experiência de vida – marcada desde a juventude por sonhos, desafios e dores crônicas, inclusive a constante batalha contra dores de cabeça e a depressão – em uma obra literária que é ao mesmo tempo rigorosa e profundamente humana.
Sua postura de negar a subjetividade desmedida e de construir a poesia como um trabalho artesanal influenciou gerações, desde os concretistas até os poetas engajados dos anos 1960.
Entre a diplomacia e a vida pessoal, João Cabral constrói uma síntese entre razão e sentimento – cada verso é lapidado com a precisão de um engenheiro e a sensibilidade de um poeta comprometido com as transformações de seu tempo.