
Gilka Machado: conheça as principais obras da poeta brasileira

Gilka Machado: conheça as principais obras da poeta brasileira
Listamos as principais obras e fatos importantes da poeta brasileira Gilka Machado, conhecida por ser a pioneira da poesia erótica no Brasil

Você já ouviu falar na poeta brasileira Gilka Machado?
“Gilka foi a primeira mulher nua da poesia brasileira”, escreveu Carlos Drummond de Andrade, na sua coluna do dia 18 de dezembro de 1980, no “Jornal do Brasil”, dedicada à memória da poeta, que havia morrido naquela semana.
“As mulheres que gozam hoje de plena liberdade literária para cantar as expansões do instinto e as propriedades eróticas do corpo deviam ser gratas a essa antecessora, viúva pobre, que ganhava a vida com esforço e gostava de estar ‘toda nua, completamente exposta à volúpia do vento’”.
Quem foi Gilka Machado?
Nascida no Rio de Janeiro, no ano de 1893, Gilka Machado cresceu e formou-se em um ambiente familiar de artistas e intelectuais. Sua mãe era atriz de teatro e radioteatro e seu pai era poeta.
Uma das únicas mulheres representantes do Simbolismo e pioneira da poesia erótica no Brasil, no primeiro concurso de poesia que ganhou, aos 14 anos, no jornal “A Imprensa”, foi logo taxada por críticos literários de “matrona imoral” pelo conteúdo dos versos (ela ganhou não só o primeiro lugar, como o segundo e o terceiro, graças aos pseudônimos que usou).
Com sua obra marcada pelo escândalo (ou incômodo!) de sua ousadia, Gilka Machado sofreu a incompreensão daqueles que só liam retorcidamente os seus versos, julgando-a devassa ou libertina.
O seu primeiro livro, “Cristais Partidos”, foi publicado aos 22 anos. Nesta época, Gilka Machado já estava casada desde os 17 com o também poeta carioca Rodolpho Machado, que morreu precocemente.
Viúva, pobre e com dois filhos para criar, foi diarista na Central do Brasil e complementava a renda fazendo pensão. Foi quando, em 1933, ganhou um concurso da revista “O Malho”, que deu a ela o título de “maior poetisa do Brasil”.
Em seus mais de 10 livros lançados em vida, Gilka Machado explorava temas além do erotismo, como a saudade, a situação da mulher, seu papel cívico e seus direitos políticos, e até futebol:
- Cristais Partidos (1915)
- A Revelação dos Perfumes (1916)
- Estados de Alma (1917)
- Poesias, 1915/1917 (1918)
- Mulher Nua (1922)
- O Grande Amor (1928)
- Meu Glorioso Pecado (1928)
- Carne e Alma (1931)
- Sonetos y Poemas de Gilka Machado (1932 – na Bolívia)
- Sublimação (1938)
Desgostosa, abandonou a poesia a partir de 1938, só lançando muito esporadicamente algumas coletâneas depois:
- Meu Rosto (1947)
- Velha Poesia (1968)
- Poesias Completas (1978)
“Amei tantos a todos e a tudo que não sobrou amor para mim mesmo”, escreveu certa vez.
Depois de sua morte, aos 87 anos, em dezembro de 1980, teve suas poesias organizadas em mais dois livros:
- Poesias Completas (1992), Organizado por Eros Volúsia
- Poesia Completa (2017), Organizado por Jamyle Rkain
Em 1910, Gilka integrou as iniciativas para fundar o Partido Republicano Feminino, que defendia o voto das mulheres e lutava por sua valorização social.
No ano anterior à morte, a poeta tinha sido agraciada com o Prêmio Machado de Assis, pela Academia Brasileira de Letras.
Hoje, apresentamos 10 poemas de Gilka Machado, para que você conheça mais sobre a obra desta importante poeta, esquecida injustamente pelo tempo.

10 poemas de Gilka Machado
1 – Saudade
De quem é esta saudade
que meus silêncios invade,
que de tão longe me vem?
De quem é esta saudade,
de quem?
Aquelas mãos só carícias,
Aqueles olhos de apelo,
aqueles lábios-desejo…
E estes dedos engelhados,
e este olhar de vã procura,
e esta boca sem um beijo…
De quem é esta saudade
que sinto quando me vejo?
(Velha poesia, 1965)
2 – Sensual
Quando, longe de ti, solitária, medito
neste afeto pagão que envergonhada oculto,
vem-me às narinas, logo, o perfume esquisito
que o teu corpo desprende e há no teu próprio vulto.
A febril confissão deste afeto infinito
há muito que, medrosa, em meus lábios sepulto,
pois teu lascivo olhar em mim pregado, fito,
à minha castidade é como que um insulto.
Se acaso te achas longe, a colossal barreira
dos protestos que, outrora, eu fizera a mim mesma
de orgulhosa virtude, erige-se altaneira.
Mas, se estás ao meu lado, a barreira desaba,
e sinto da volúpia a escosa e fria lesma
minha carne poluir com repugnante baba…
3 – Ser mulher…
Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
para os gozos da vida, a liberdade e o amor;
tentar da glória a etérea e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior…
Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor;
sentir a vida triste, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um Senhor…
Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais…
Ser mulher, e oh! Atroz, tantálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!
Cristais Partidos (1915)
4 – Reflexão
Há certas almas
como as borboletas,
cuja fragilidade de asas
não resiste ao mais leve contato,
que deixam ficar pedaços
pelos dedos que as tocam.
Em seu vôo de ideal,
deslumbram olhos,
atraem as vistas:
perseguem-nas,
alcançam-nas,
detém-nas,
mas, quase sempre,
por saciedade
ou piedade,
libertam-nas outra vez.
Ela, porém, não voam como dantes,
ficam vazias de si mesmas,
cheias de desalento…
Almas e borboletas,
não fosse a tentação das cousas rasas;
– o amor de néctar,
– o néctar do amor,
e pairaríamos nos cimos
seduzindo do alto,
admirando de longe!…
(Sublimação, 1928)
5 – Na plena solidão de um amplo descampado
Na plena solidão de um amplo descampado,
penso em ti e que tu pensas em mim suponho;
tenho toda a feição de um arbusto isolado,
abstrato o olhar, entregue à delícia de um sonho.
O Vento, sob o céu de brumas carregado,
passa, ora langoroso, ora forte, medonho!
e tanto penso em ti, ó meu ausente amado!
que te sinto no Vento e a ele, feliz, me exponho.
Com carícias brutais e com carícias mansas,
cuido que tu me vens, julgo-me toda tua…
– sou árvore a oscilar, meus cabelos são franças…
E não podes saber do meu gozo violento,
quando me fico, assim, neste ermo, toda nua,
completamente exposta à Volúpia do Vento!
Estados de alma (1917)
6 – Troversando
Do sucesso na subida
nunca te orgulhes demais
muito difícil na vida
é conservar o cartaz
Eu não explico a ninguém
pois ainda não compreendi
porque te chamo meu bem
se sofro tanto por ti.
Entre nuvens no infinito,
sofro a prisão mais prisão…
Sinto-me pássaro aflito
na gaiola de um avião.
Não rias do que te digo
mas sempre na nossa alcova
eu quisera estar contigo
como escova sobre escova.
Do meu coração me espanto!
O amor só me deu pesar,
como tendo amado tanto
tenho ainda amor para dar?!…
Velha Poesia (1965)
7 – Ânsia Múltipla
Beija-me Amor,
beija-me sempre e mais e muito mais,
– em minha boca esperam outras bocas
os beijos deliciosos que me dás!
Beija-me ainda,
ainda mais!
Em mim sempre acharás
à tua vinda
ternuras virginais.
Beija-me mais, põe o mais cálido calor
nos beijos que me deres,
pois viva em mim a alma de todas as mulheres
que morreram sem amor!…
Mulher Nua (1922)
8 – Mal assomou à minha ansiosa vista
Mal assomou à minha ansiosa vista
o teu perfil que invoca o dos rajás
senti-me mais mulher e mais artista,
com requintes de sonhos orientais.
Do teu amor à esplêndida conquista,
minha carne e minha alma são rivais:
far-me-ei a sempre inédita, a imprevista,
para que cada vez me queiras mais.
Feitas de sensações extraordinárias,
aguardam-te em meu ser mulheres várias,
para teu gozo, para teu festim.
Serás como os sultões do velho Oriente,
só meu, possuindo, simultaneamente,
as mulheres ideais que tenho em mim…
Meu Glorioso Pecado (1928)
9 – Fecundação
Teus olhos me olham
longamente,
imperiosamente…
de dentro deles teu amor me espia.
Teus olhos me olham numa tortura
de alma que quer ser corpo,
de criação que anseia ser criatura
Tua mão contém a minha
de momento a momento:
é uma ave aflita
meu pensamento
na tua mão.
Nada me dizes,
porém entra-me a carne a persuasão
de que teus dedos criam raízes
na minha mão.
Teu olhar abre os braços,
de longe,
à forma inquieta de meu ser;
abre os braços e enlaça-me toda a alma.
Tem teu mórbido olhar
penetrações supremas
e sinto, por senti-lo, tal prazer,
há nos meus poros tal palpitação,
que me vem a ilusão
de que se vai abrir
todo meu corpo
em poemas.
(Sublimação, 1928)
10 – Lembranças
Teus retratos — figuras esmaecidas;
mostram pouco, muito pouco do que foste.
Tuas cartas — palavras em desgaste,
dizem menos, muito menos
do que outrora me diziam
teus silêncios afagantes…
Só o espelho da minha memória
conserva nítida, imutável
a projeção de tua formosura,
só nos folhos dos meus sentidos
pairam vívidas
em relevo
as frases que teu carinho
soube nelas imprimir.
Sou a urna funerária de tua beleza
que a saudade
embalsamou.
Quando chegar o meu instante derradeiro
só então, mais do que eu,
tu morrerás
em mim.
Velha Poesia (1965)
por Lívia Nolla