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Chupim e a fábrica de peões: perspectivas sobre a herança escravocrata

Jeovanna Vieira
15:38 14.11.2024
Autor

Jeovanna Vieira

Escritora
Arte e cultura

Chupim e a fábrica de peões: perspectivas sobre a herança escravocrata

Para o agro, as crianças são peças de reposição, enquanto na arte de Itamar e Manuela toda humanidade está presente

Novabrasil - 14.11.2024 - 15:38
Chupim e a fábrica de peões: perspectivas sobre a herança escravocrata
Foto: Divulgação.

Eu havia me programado para fazer análise dos símbolos utilizados tanto por Itamar Vieira Junior, quanto por Manuela Navas, que resultaram num entrosamento que Emicida chamou de magistralidade milagreira. A poesia e leveza do texto de Itamar está em equilíbrio com as imagens quentes da paleta escolhida por Manu. Neste mês, em que se convencionou falar de uma consciência negra, eu me contentaria em exaltar a publicação de um livro belíssimo editado pela Baião, amplamente recomendado e distribuído. A obra, além de registrar as infâncias na lida com a roça, conecta Julim e a paisagem rural às crianças dos centros urbanos. O protagonista de Chupim, com seu olhar cismado, questiona a natureza do pássaro que ele deveria afugentar e descobre que eles têm em comum a resiliência e a necessidade de migrar para sobreviver. Já daria pano pra manga.

“Os irmãos mais velhos já estavam de pé. Mas Julim, que dormia em sua rede, queria era ficar um pouco mais no seu sonho.”

Ocorre que, por mais que a beleza de Chupim nos distraia, a realidade embosca a gente. Numa dessas zapeadas no instagram, acabei caindo num corte da entrevista com o engenheiro-agrônomo, Ricardo Arantes, concedida ao podcast “Agro em debate”. Em um trecho da conversa, o engenheiro fala: “Nos currais, nas fazendas, o pai era peão e o menino dizia: ‘Pai, eu quero fazer o que você faz’. Aí logo tinha um cavalinho, o menino de 14 anos, de 12 anos, aprendia com o pai e já virava um peão e ia embora. Agora, hoje é proibido por lei… e o pai não quer. ‘Não, meu filho, você não vai ser peão não, você vai estudar, você vai ser doutor, vai fazer uma coisa melhor. A profissão do pai não, a profissão do pai é ruim, sofrida’. A fábrica de peão acabou”.

Fiquei tão absolutamente ultrajada com a desfaçatez e a tranquilidade com as quais este senhor falava sobre a “reposição dos peões”, que precisei ouvir o episódio inteiro e assim reescrever minha impressão sobre Chupim, sob a luz da indignação. Nessa ocasião, me pareceu cretinice não relacionar a poesia da obra à truculência da entrevista. Que consciência negra é essa se não questionar a herança escravocrata nas relações de trabalho? Guardei meus confetes e a serpentina.

Pensei em Julim. Filho de pai-peão, derrubando a pecha de praga da ave que, veja bem, tem os mesmos hábitos da sua própria gente: trabalhar, migrar e subsistir. Gosto de imaginar que Julim é o terror do Seu Arantes, as perspectivas se colidem. Imagina o desaforo: uma criança que larga a enxada e volta doutor para propor novas dinâmicas de trabalho para o cultivo da terra.

“É bom que tragam as crianças”, dizia o chefe aos trabalhadores. “As crianças correm pelos campos e as pragas, assustadas, vão embora”.

O contraponto apresentado pelos empregadores é que sem engatar na profissão do pai, as crianças se perdem na vagabundagem, cedem ao álcool e outras drogas e acrescem os índices de nem-nem, nem trabalham, nem estudam. Nessa manobra maniqueista de “ou trabalha pra mim ou vira marginal”, como se apresentar outras alternativas para os chucros fosse um desperdício, as crianças têm encontrado seu próprio caminho através de políticas públicas educacionais, o que Arantes chama com desgosto de “efeito Lula”. E nós sabemos que não é nem com o destino das crianças, nem com o equilíbrio social que os patrões se preocupam, mas sim com a falta do braçal que possa ocupar o posto vago.

Foto: Divulgação.

Não tolerarei

No mesmo novembro dedicado à tomada de consciência dos impactos racistas na formação disfuncional da sociedade brasileira, a gente se depara com frases como essa: “daqui a uns 5, 6, 7 ou 8 anos não vamos ter peão mais”, ditas com pesar. Geralmente, esse discurso está alinhado a narrativas de que avanços dos direitos dos trabalhadores vão quebrar o Brasil, destruir a economia, parar a roda que gira o mundo. Esse terror é uma prática colonial reincidente desde 1888,

quando se discutia o fim do tráfico de pessoas. Prática repetida quando o salário mínimo foi implementado, outra vez no processo de Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em 1934, e no debate sobre o fim do trabalho infantil em 1938.

Em pleno 2024, está em curso, a luta pelo fim da escala 6 x 1 (seis dias trabalhados para um dia de folga) e mais uma vez se apresenta a lógica de que observar a humanidade do trabalhador significa fragilizar a economia. O que a proposta da Deputada Federal, Érika Hilton (PSOL- SP) reivindica é tempo para se humanizar. Além do sobre-esforço, o que o patrão quer no chão de fábrica, nos estoques de lojas, nas bancadas dos restaurantes, na lida com a terra, é que falte exatamente isso: tempo de contemplação. Afinal, a quem interessa um Julim tomando consciência da sua importância na cadeia produtiva?

Eu não estou aqui dizendo que todo mundo precisa virar doutor e abandonar o trabalho no campo. O meu ponto é: se o Seu Arantes estivesse preocupado com a continuidade do serviço prestado seria mais decente encarar a mão de obra com tecnicidade e profissionalismo que o agro empreende. Não é simples, mas é necessário qualificar e garantir direitos. Mas o que se vê é exatamente o contrário: quando a função na lida deixa de ser perigosa, extenuante e precária, o peão é escanteado e substituído. É o que é, o trabalho braçal é uma herança escravocrata, assim como a jornada de 44 horas também é.

Os livros não têm que nada-nada. Nem o livro para os adultos, nem os livros para as infâncias. Não precisa de nada além de existir e circular. Mas Chupim entrega tudo: beleza, encantamento, um retrato social, rompe a lógica do colonialismo, e de quebra, fere de morte pessoas como o agrônomo que está preocupado com o fechamento da fábrica de peões. Para combater atrocidades, recorro à inquietude de Julim. Trabalhador não é praga, nem o chupim é.

Foto: Divulgação.

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colunista

Jeovanna Vieira

Jeovanna Vieira nasceu em 1985, em Vila Velha, no Espírito Santo. Formada em jornalismo, é autora do livro de poemas Deserto sozinha (Pedregulho, 2023). Virgínia mordida é seu romance de estreia, lançado pela Companhia das Letras. É mãe de Joaquim e Bento e atualmente mora nos Emirados Árabes.

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