5 poemas imperdíveis de Jorge de Lima: do modernismo à mística

Clarissa Sayumi
15:00 18.04.2025
Arte e cultura

5 poemas imperdíveis de Jorge de Lima: do modernismo à mística

Descubra a obra do poeta que uniu regionalismo, fé e surrealismo em versos inesquecíveis

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- 18.04.2025 - 15:00
5 poemas imperdíveis de Jorge de Lima: do modernismo à mística
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Jorge de Lima (1893-1953) foi um dos poetas mais originais do modernismo brasileiro, transitando entre o regionalismo nordestino e a poesia religiosa e surrealista. Sua obra é marcada por uma linguagem rica, cheia de simbolismos e profundidade existencial.

Se você é amante de literatura ou está descobrindo sua obra agora, prepare-se para uma viagem poética inesquecível!

Seleção de Poemas Que Marcaram Época

1. “Essa Negra Fulô” (1928)

Ora, se deu que chegou
(isso já faz muito tempo)
no bangüê dum meu avô
uma negra bonitinha,
chamada negra Fulô.

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
— Vai forrar a minha cama
pentear os meus cabelos,
vem ajudar a tirar
a minha roupa, Fulô!

Essa negra Fulô!

Essa negrinha Fulô!
ficou logo pra mucama
pra vigiar a Sinhá,
pra engomar pro Sinhô!

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
vem me ajudar, ó Fulô,
vem abanar o meu corpo
que eu estou suada, Fulô!
vem coçar minha coceira,
vem me catar cafuné,
vem balançar minha rede,
vem me contar uma história,
que eu estou com sono, Fulô!

Essa negra Fulô!

“Era um dia uma princesa
que vivia num castelo
que possuía um vestido
com os peixinhos do mar.
Entrou na perna dum pato
saiu na perna dum pinto
o Rei-Sinhô me mandou
que vos contasse mais cinco”.

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
Vai botar para dormir
esses meninos, Fulô!
“minha mãe me penteou
minha madrasta me enterrou
pelos figos da figueira
que o Sabiá beliscou”.

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá
Chamando a negra Fulô!)
Cadê meu frasco de cheiro
Que teu Sinhô me mandou?
— Ah! Foi você que roubou!
Ah! Foi você que roubou!

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

O Sinhô foi ver a negra
levar couro do feitor.
A negra tirou a roupa,
O Sinhô disse: Fulô!
(A vista se escureceu
que nem a negra Fulô).

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
Cadê meu lenço de rendas,
Cadê meu cinto, meu broche,
Cadê o meu terço de ouro
que teu Sinhô me mandou?
Ah! foi você que roubou!
Ah! foi você que roubou!

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

O Sinhô foi açoitar
sozinho a negra Fulô.
A negra tirou a saia
e tirou o cabeção,
de dentro dêle pulou
nuinha a negra Fulô.

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
Cadê, cadê teu Sinhô
que Nosso Senhor me mandou?
Ah! Foi você que roubou,
foi você, negra fulô?

Essa negra Fulô!

Um dos poemas mais conhecidos de Jorge de Lima, retrata a figura da negra Fulô com lirismo e força, abordando temas como escravidão, identidade e resistência.

Por que ler? Uma obra essencial para entender a representação afro-brasileira na poesia modernista.

2. “O Acendedor de Lampiões” (1932)

Lá vem o acendedor de lampiões da rua!

Este mesmo que vem infatigavelmente,

Parodiar o sol e associar-se à lua

Quando a sombra da noite enegrece o poente!

Um, dois, três lampiões, acende e continua

Outros mais a acender imperturbavelmente,

À medida que a noite aos poucos se acentua

E a palidez da lua apenas pressente.

Triste ironia atroz que o senso humano irrita: —

Ele que doira a noite e ilumina a cidade,

Talvez não tenha luz na choupana em que habita.

Tanta gente também nos outros insinua

Crenças, religiões, amor, felicidade,

Como este acendedor de lampiões de rua!

O poema retrata a figura humilde do trabalhador noturno que ilumina as ruas enquanto a cidade dorme, criando um contraste entre sua função social e sua possível realidade obscura. O poema, de tom melancólico e reflexivo, usa imagens como a noite, a lua pálida e os lampiões para simbolizar a dualidade entre luz e escuridão, sugerindo que o acendedor, mesmo trazendo claridade aos outros, pode viver na miséria.

A última estrofe amplia essa ironia, comparando-o a todos que propagam crenças, amor ou felicidade sem necessariamente desfrutarem delas — uma crítica sutil à desigualdade e à condição humana. Com versos simples mas carregados de simbolismo, Jorge de Lima transforma um ofício esquecido em uma metáfora universal sobre trabalho, invisibilidade e as contradições da sociedade.

3. “Poema do Natal” (1938)

Ó Meu Jesus, quando você

ficar assim maiorzinho

venha para darmos um passeio

que eu também gosto de crianças.

Iremos ver as feras mansas

que há no jardim zoológico.

E em qualquer dia feriado

iremos, então, por exemplo,

ver Cristo Rei do Corcovado.

E quem passar

vendo o menino

há de dizer: ali vai o filho

de Nossa Senhora da Conceição!

— Aquele menino que vai ali

(diversos homens logo dirão)

sabe mais coisas que todos nós!

— Bom dia, Jesus!  — dirá uma voz.

E outras vozes cochicharão:

— É o belo menino que está no livro

da minha primeira comunhão!

— Como está forte!  — Nada mudou!

— Que boa saúde!  Que boas cores!

(Dirão adiante outros senhores.)

Mas outra gente de aspecto vário

há de dizer ao ver você:

—  É o menino do carpinteiro!

E vendo esses modos de operário

que sai aos domingos para passear,

nos convidarão para irmos juntos

os camaradas visitar.

E quando voltarmos

Veja também:

pra casa, à noite,

e forem para o vício os pecadores,

eles sem dúvida me convidarão.

Eu hei de inventar pretextos sutis

pra você me deixar sozinho ir.

Menino Jesus, miserere nobis,

segure com força a minha mão.

O poema apresenta um diálogo íntimo e afetuoso com o Menino Jesus, misturando devoção religiosa e elementos do cotidiano, como passeios ao zoológico e ao Cristo Redentor, o que cria uma imagem humanizada e acessível da figura divina.

A linguagem coloquial e o tom lúdico contrastam com a profundidade teológica, sugerem uma relação pessoal e terna com o sagrado. No entanto, à medida que o poema avança, surgem tensões sociais — alguns reconhecem Jesus como o “filho de Nossa Senhora” ou o “menino do carpinteiro”, enquanto outros o associam aos trabalhadores, revelando divisões de classe mesmo na percepção do divino.

O final, em que o eu lírico pede que Jesus “segure com força a minha mão” e evita que ele o acompanhe aos “vícios dos pecadores”, mostra uma ambiguidade entre proteção e culpa, unindo inocência infantil, fé e consciência da fragilidade humana. A obra, assim, equilibra simplicidade e complexidade, funde o mundano e o espiritual numa reflexão sobre devoção, identidade e redenção.

4. “Poema do Cristão” (1938)

Porque o sangue de Cristo

jorrou sobre os meus olhos,

a minha visão é universal

e tem dimensões que ninguém sabe.

Os milênios passados e os futuros

não me aturdem porque nasço e nascerei,

porque sou uno com todas as criaturas,

com todos os seres, com todas as coisas

que eu decomponho e absorvo com os sentidos

e compreendo com a inteligência

transfigurada em Cristo.

Tenho os movimentos alargados.

Sou ubíquo: estou em Deus e na matéria;

sou velhíssimo e apenas nasci ontem,

estou molhado dos limos primitivos,

e ao mesmo tempo ressoo as trombetas finais, compreendo todas as línguas, todos os gestos, todos os signos, tenho glóbulos de sangue das raças mais opostas. Posso enxugar com um simples aceno o choro de todos os irmãos distantes. Posso estender sobre todas as cabeças um céu unânime e estrelado.

Chamo todos os mendigos para comer comigo,

e ando sobre as águas como os profetas bíblicos.

Não há escuridão mais para mim.

Opero transfusões de luz nos seres opacos,

posso mutilar-me e reproduzir meus membros como as estrelas do mar, porque creio na ressurreição da carne e creio em Cristo, e creio na vida eterna, amém. E tendo a vida eterna posso transgredir leis naturais:

a minha passagem é esperada nas estradas, venho e irei como uma profecia, sou espontâneo como a intuição e a Fé. Sou rápido como a resposta do Mestre, sou inconsútil como a sua túnica, sou numeroso como a sua Igreja, tenho os braços abertos como a sua Cruz despedaçada e refeita

todas as horas, em todas as direções, nos quatro pontos

cardeais; e sobre os ombros A conduzo

através de toda a escuridão do mundo, porque tenho a luz

eterna nos olhos. E tendo a luz eterna nos olhos sou o maior mágico: ressuscito na boca dos tigres, sou palhaço, sou alpha e

ômega, peixe, cordeiro, comedor de

gafanhotos, sou ridículo, sou tentado e perdoado, sou derrubado no chão e glorificado, tenho

mantos de púrpura e de estamenha, sou burríssimo

como São Cristóvão e sapientíssimo Santo Tomas. E sou louco, inteiramente louco, para sempre, para todos os séculos, louco de Deus, amém. E sendo a loucura de Deus, sou a razão das coisas, a ordem e a medida, sou a balança, a criação, a obediência,

sou o arrependimento, sou a humildade, sou o autor da paixão e morte de Jesus, sou a culpa de tudo, Nada sou. Miserere mei, Deus, secundum magnam misericordiam tuam!

Este poema de Jorge de Lima é uma explosão mística e cósmica, em que o eu lírico, transfigurado pelo sangue de Cristo, alcança uma condição sobrenatural, dissolvendo as barreiras entre tempo, espaço e identidade.

O poeta se proclama simultaneamente eterno e efêmero, sagrado e profano (“sou palhaço”, “sou ridículo”), incorporando contradições que sintetizam a experiência religiosa como êxtase e sofrimento. A repetição de “creio em Cristo” e “amém” reforça o tom de oração, enquanto a fusão de humildade e grandiosidade (“Nada sou” vs. “sou a razão das coisas”) ecoa a dialética cristã entre pecado e redenção.

A obra culmina num grito de loucura divina (“louco de Deus”), onde a fé se torna tanto desmedida quanto libertadora, afirma o poder transformador da graça que converte caos em ordem, escuridão em luz eterna.

5. “Invenção de Orfeu” (1952)

Jorge de Lima alcança aqui o ápice de sua expressão artística, combinando densidade humana e fulgor poético para compor uma epopeia moderna da identidade brasileira. Para isso, dialoga com as grandes tradições literárias — do clássico ao vanguardista, do bíblico ao mitológico.

Com audácia, integra o popular e o erudito, o místico e o surreal, sem jamais abandonar seu compromisso com as urgências sociais, denuncia desigualdades e propõe, através da arte, uma transcendência que reconcilie o homem com sua própria história. 

Trecho

I

Caída a noite
o mar se esvai,
aquele monte
desaba e cai
silentemente.

Bronzes diluídos
já não são vozes,
seres na estrada
nem são fantasmas,
aves nos ramos
inexistentes;
tranças noturnas
mais que impalpáveis,
gatos nem gatos,
nem os pés no ar,
nem os silêncios.

O sono está.
E um homem dorme.

Por que reler Jorge de Lima hoje?

A poesia de Jorge de Lima permanece atual porque fala de temas universais—amor, morte, fé e identidade—com uma linguagem que desafia convenções. Seus versos são viscerais, místicos e profundamente humanos, garantem seu lugar entre os maiores nomes da literatura brasileira.

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