Só quem já morreu na fogueira sabe o que é ser carvão! Você conhece a história de Pagu, a musa inspiradora da canção emblemática de Rita Lee e Zélia Duncan? Vamos te contar!

Patrícia Galvão, a Pagú (c. 1930) | Foto: Divulgação.
Rita Lee e Zélia Duncan sempre foram mulheres importantíssimas nas lutas pelos direitos das mulheres
Além de dois dos maiores nomes da MPB de todos os tempos, as cantoras, compositoras e instrumentistas Rita Lee e Zélia Duncan sempre foram mulheres importantíssimas nas lutas pelos direitos das mulheres: por respeito, por equidade, por liberdade.
Ativistas e feministas, não participaram somente de revoluções no que diz respeito à música do nosso país, mas também no que diz respeito à sociedade como um todo, ao comportamento, independência e posicionamento das mulheres em uma sociedade machista e dominada por homens, não somente no rock’n roll.
Rita Lee foi a primeira grande roqueira do Brasil e abriu caminhos para centenas de artistas mulheres, como Zélia Duncan
Rita foi a primeira grande roqueira do nosso país, lá nos anos 60. Foi também a primeira a cantar sobre a liberdade e o prazer sexual feminino. Suas letras fortes e questionadoras foram fundamentais para este movimento, sempre rompendo com as convenções sociais impostas. Ela abriu caminho para que centenas de artistas mulheres conquistassem seu espaço e sua força.
Uma dessas mulheres foi Zélia Duncan. Plural e autêntica, Zélia surgiu no cenário musical no início dos anos 90, e até hoje atua ativamente em diversas causas, falando sobre assuntos importantes em suas redes, questionando a forma como a sociedade nos impõe padrões e sobre suas hipocrisias.
No ano 2000, essas duas potências da nossa música e grandes inspirações para tantas mulheres, se juntaram para compor juntas uma canção sobre outra mulher muito importante na luta feminista: a escritora, poetisa, diretora, tradutora, desenhista, cartunista, jornalista e militante Patrícia Galvão, a Pagu.
A história da música Pagu, de Rita Lee e Zélia Duncan
Mexo, remexo na inquisição
Só quem já morreu na fogueira
Sabe o que é ser carvão
Eu sou pau pra toda obra
Deus dá asas a minha cobra
Minha força não é bruta
Não sou freira, nem sou puta
Porque nem toda feiticeira é corcunda
Nem toda brasileira é bunda
Meu peito não é de silicone
Sou mais macho que muito homem
Quem foi Pagu?
Patrícia Galvão, a Pagu, nasceu em uma família tradicional de classe alta do interior de São Paulo. Considerada desde menina à frente do seu tempo, chocava a sociedade conservadora da época por seu comportamento livre e autêntico, tanto no modo de se vestir e de usar os cabelos, quanto por seus relacionamentos amorosos e seu modo de falar e expressar-se.
Feminista desde sempre, com 15 anos, mudou-se com a família para a capital paulista, onde conseguiu o primeiro emprego, como redatora, passando a escrever críticas contra o governo e contra as injustiças sociais, em uma coluna de notícias do Brás Jornal, assinando com o pseudônimo de Patsy.
Como surgiu seu apelido
Embora tenha se tornado a musa dos modernistas, Pagu não participou da Semana de Arte Moderna, pois tinha apenas doze anos em 1922, quando o evento aconteceu. Mas, em 1928, aos 18 anos, pouco depois de completar o curso na Escola Normal de São Paulo, integrou-se ao Movimento Antropofágico, sob a influência de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral.
O apelido Pagu surgiu de uma confusão do poeta modernista Raul Bopp, ao dedicar a ela, em 1928, o poema Coco de Pagu:
Pagu tem uns olhos moles
Uns olhos de fazer doer.
Bate-coco quando passa.
Coração pega a bater.
Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer
Bopp inventou o apelido, imaginando que seu nome fosse Patrícia Goulart – e não Patrícia Galvão – e pretendendo fazer uma brincadeira com as primeiras sílabas do nome. O poema de Raul Bopp foi responsável por tornar célebre a jovem Pagu. Foi publicado em vários jornais da época e interpretado por sua musa no palco do Teatro Municipal de São Paulo, em 1929.
Pagu também foi como desenhista e ilustradora
Outra faceta de Pagu foi como desenhista e ilustradora. Participou da Revista de Antropofagia, publicada entre 1928 e 1929, entre outras publicações. No jornal O Homem do Povo, publicou a tira Malakabeça, Fanika e Kabeluda.
Ainda em 1928, Pagu, que já havia se relacionado com homens famosos e anônimos, solteiros e casados, iniciou um novo romance secreto, desta vez com Oswald de Andrade, enquanto ele ainda era casado com Tarsila do Amaral. Em 1929, a separação de Oswald para ficar com Pagu causou grande escândalo social e Pagu foi, mais uma vez, julgada.

No jornal O Homem do Povo, Pagu publicou a tira Malakabeça, Fanika e Kabeluda | Foto: Jéssica Antunes Ferrara em artigo MODERNIDADE E EMANCIPAÇÃO FEMININA NAS TIRINHAS DE PAGU.
Oswald e Pagu casaram-se em uma cerimônia simbólica e pouco convencional
Em 1930, outro grande “choque” para a sociedade aconteceu quando Oswald e Pagu casaram-se em uma cerimônia simbólica e pouco convencional, realizada no Cemitério da Consolação.
O casamento oficial, no civil e na igreja, aconteceu um mês depois, quando Pagu já estava grávida de seis meses, o que foi – mais uma vez – considerado um escândalo. No ano seguinte, o casal tornou-se militante do Partido Comunista Brasileiro, fundando juntos o jornal O Homem do Povo.
Ao participar da organização de uma greve de estivadores em Santos, ainda em 1931, Pagu foi presa pela polícia política de Getúlio Vargas. Foi a primeira de uma série de 23 prisões ao longo da vida da ativista.
Apesar dos julgamentos, Pagu seguia firme em seus ideiais
Em 1933, partiu para uma viagem pelo mundo, deixando no Brasil o marido e o filho, mais um julgamento aos olhares da sociedade para a conta de Pagu. No mesmo ano publicou o romance Parque Industrial, considerado o primeiro romance proletário brasileiro, sob o pseudônimo de Mara Lobo.
Em 1934, devido às constantes traições de Oswald, Pagu saiu de casa com o filho para morar sozinha, algo considerado inaceitável para os conservadores da época. Mas Pagu seguia firme em seus ideais.
Em 1935, foi presa em Paris como comunista estrangeira, com identidade falsa, sendo repatriada para o Brasil. Retomou sua atividade jornalística, criticando o governo. Sua nova identidade falsa foi descoberta, e Pagu foi novamente presa e torturada.
Desta vez, ficou na cadeia por cinco anos, o que a levou a um intenso desespero, ampliando ainda mais sua capacidade artística e criativa. Nesse período, seu filho Rudá de Andrade foi criado por Oswald. Ele levava o menino para visitar a mãe em alguns finais de semana.

Pagu, Oswald de Andrade e filho Rudá, no início da década de 1930 | Foto: Acervo Lúcia Teixeira/ Centro Pagu Unisanta
Escreveu também contos policiais, sob o pseudônimo King Shelter
Ao sair da prisão, em 1940, Pagu rompeu com o Partido Comunista, passando a defender um Socialismo de linha Trotskista. Integrou a redação do periódico Vanguarda Socialista junto com seu novo marido, Geraldo Ferraz. Desta união, que durou até o fim de sua vida, nasceu seu segundo filho. Pagu voltou a criar seu filho mais velho, e passou a morar com seus dois filhos e o marido na capital paulista.
Nessa mesma época, viajou à China para lançar seus novos trabalhos artísticos. Escreveu também contos policiais, sob o pseudônimo King Shelter, publicados originalmente em 1944, na revista Detective, dirigida pelo dramaturgo Nelson Rodrigues.
Em 1945, Pagu lançou um novo romance, A Famosa Revista, escrito em parceria com o marido.
Em 1952 frequentou a Escola de Arte Dramática de São Paulo, levando seus espetáculos teatrais a Santos. Ligada ao teatro de vanguarda, apresentou sua tradução de A Cantora Careca, de Eugène Ionesco. Traduziu e dirigiu Fando e Liz de Fernando Arrabal, em uma montagem amadora na qual estreava o jovem ator Plínio Marcos. Também traduziu poemas de Guillaume Apollinaire. Conhecida como grande animadora cultural em Santos, lá passou a residir com o marido e os filhos, no ano de 1953.
Em seu trabalho, junto a grupos teatrais, revelou e traduziu grandes autores
Em seu trabalho, junto a grupos teatrais, revelou e traduziu grandes autores até então inéditos no Brasil como:
- James Joyce;
- Eugène Ionesco;
- Fernando Arrabal;
- e Octavio Paz.
A musa inspiradora da canção Pagu trabalhava como crítica de arte quando foi acometida por um câncer de pulmão, em 1960. Viajou a Paris para se submeter a uma cirurgia, sem resultados positivos, e passou a morar na capital francesa com seu marido, para continuar realizando tratamento quimioterápico.
Decepcionada e desesperada por estar doente, sem poder trabalhar com arte, seu maior prazer, e necessitando ficar sempre acamada, Pagu desenvolveu uma profunda depressão, e tentou o suicídio, tentando dar um tiro na própria cabeça, sendo impedida pelo marido, ferindo-se apenas de raspão. Após dois anos de tratamento, voltou ao Brasil, morrendo em Santos, um mês depois, em 12 de dezembro de 1962, aos 52 anos. Há exatos 60 anos.

Em reunião de teatro, Pagu, ao centro, ao lado de Paschoal Carlos Magno. Abaixo, de óculos, Maurice Lègeard. De bigode, Evêncio da Quinta, ao lado de Plínio Marcos | Foto: Arquivo Cinemateca de Santos.
Versões de Pagu
Sou rainha do meu tanque
Sou Pagu indignada no palanque
Fama de porra louca, tudo bem
Minha mãe é Maria ninguém
Não sou atriz, modelo, dançarina
Meu buraco é mais em cima
Porque nem toda feiticeira é corcunda
Nem toda brasileira é bunda
Meu peito não é de silicone
Sou mais macho que muito homem
A canção foi lançada por Rita Lee, em seu álbum 3001, do ano 2000. Dois anos depois, Zélia Duncan a gravou em seu DVD Sortimento Vivo, e – em 2003 – a música também fez muito sucesso na regravação de Maria Rita.
Viva Pagu, Rita, Zélia e Maria!
E viva todas as Pagus, Ritas, Zélias e Marias, mais machos que muitos homens!