Maria Rezende: “1001 dias com ela: feminismo desde o berço”
Literatura feminista com Maria Rezende
Escritora feminista
Maria Rezende: “1001 dias com ela: feminismo desde o berço”
Livro de Renata Magliocca, escritora mineira, é um íntimo manifesto feminista em forma de cartas para a filha recém nascida
Foi com muito entusiasmo que recebi o convite-provocação pra escrever para o site da Novabrasil indicando livros feministas.
O feminismo entrou na minha vida já adulta, e chegou revolucionando tudo, mudando quem eu sou e como me coloco no mundo. Me espantei ao rever meus poemas de juventude e minha trajetória como mulher e artista e perceber que, na essência, sempre fui feminista.
Acho que era a palavra que me assustava, provavelmente porque eu estava imersa na cultura que identifica feministas como mulheres raivosas, radicais, bradando pelas ruas com suvacos peludos e nada de maquiagem.
Hoje sei que somos muitas, múltiplas, cada uma com suas escolhas estéticas e suas especificidades de raça, identidade sexual, classe social, mas irmanadas pela certeza de que homens e mulheres merecem viver com dignidade e gozar dos mesmos direitos. Essa luta se dá nas ruas, nos plenários, mas antes de tudo na poeira do cotidiano, dentro de casa.
Por isso a minha estreia é escrevendo sobre o livro 1001 dias com ela, da autora mineira-paulistana Renata Magglioca. Porque se é pra falar de feminismo, vamos começar do começo: o nascimento. Ou ainda antes: a gravidez. “É menino ou menina?”, perguntam todos, e a resposta dá início ao sexismo nosso de cada dia. Pros meninos dinossauros, tubarões, astronautas.
Pras meninas borboletas, flores, estrelinhas. Força pra eles, delicadeza pra elas. Bolas e carrinhos pra que eles explorem o mundo, bonecas e panelinhas pra que elas pratiquem o cuidado.
1001 dias com ela tem roupagem infanto-juvenil (com ilustrações lindas de Mariana Lacanna), mas fala mesmo é com os adultos. O livro é composto de cartas para a filha recém nascida, escritas mensalmente em forma de e-mail em seus primeiros dois anos de vida, a partir de outubro de 2014.
Nina nasce e Renata vai destrinchando as armadilhas da idealização da maternidade enquanto reflete sobre a liberdade e autonomia que deseja para sua filha. Já no primeiro mês ela descobre que seu desejo de controlar tudo não evaporou ao parir: “Aquela mãe que eu pensava doce e tranquila nunca veio nos visitar. Talvez, porque eu mesma pedi. Nada de visitas. E ela respeitou.”.
A chegada da filha renova seus olhos e retira de ambas o peso das expectativas: “Você não ensinou para o seu pai e eu o que é amar, nem nos tornou fortes e corajosos. Muito menos nos fez felizes. Ninguém faz isso por ninguém, minha filha. Não carregue esse peso.”
O formato epistolar me fez lembrar de outro livro sobre maternidade, educação e feminismo, o best seller Para criar crianças feministas, de Chimamanda Ngozi Adichie. Me espantei ao notar que foram ambos lançados no primeiro semestre de 2017. A escritora nigeriana transformou em livro uma longa carta escrita para uma amiga grávida de uma menina. Renata fez o mesmo com as cartas escritas para Nina. Um livro é mais abertamente militante, o outro o faz nas entrelinhas da prosa poética.
Mas então é um livro para mães? E mães de meninas? Eu diria que é um livro para adultos. Adultos, no plural masculino, é otimismo meu, que acredito que refletir sobre essas pautas é missão de homens e mulheres. Não só pais e mães, mas todos que convivem com crianças, porque traz questionamentos e olhares para o mundo que valem independente do gênero – ainda que afetem mais as garotas. “Nina, há oito meses a pergunta que mais escuto por aqui é: ela é boazinha? Sabe qual a minha resposta mais frequente, filha? Ela é que nem a gente: tem dias bons e ruins. Noites também. Te digo: Nina, pode ser quem você puder. Desde que seja de verdade. Por inteira. Não, não deixe de comunicar o que sente porque você precisa agradar a todos. Pode chorar. Pode falar. Pode ser você. Quando a gente se respeita, aprende a fazer isso com o outro também. E assim a vida fica tão boa. Tão boazinha.”
Na medida em que a filha cresce e lida com emoções consideradas feias ou inadequadas, a escritora a libera para sentir e expressar tudo. Afinal o que seria “feminino”? Laços, brincos, brilhos, voz baixa? “Nina, cumprimente a sua mais nova amiga: a raiva. Deixa ela entrar, saber que é bem-vinda. Ignore quanto te disserem que não é bonito uma menina como você sentir raiva. É lindo, minha filha. Raiva percorre o corpo todo, nos faz inteiros. Da cabeça ao dedo do pé. Raiva nos coloca no presente e nos dá força pra ir a lugares nossos, mas desconhecidos.” E quem de nós, mulheres adultas, não gostaria de ter crescido autorizada a sentir e expressar tudo?
Renata não fala em “consentimento”, palavra da moda, mas deixa claro que ele vale não só para mulheres adultas como para crianças. Olhando com cuidado, fica claro que respeitar as sensações e desejos dos pequenos sobre seus corpos e afetos, ensinando que tocar e ser tocado não tem nada a ver com ser educado, é a única maneira de mantê-los seguros e evitar abusos. “Não te incentivo a dar beijo e abraço em quem você não queira porque afeto quando é sincero encontra outro jeito. Pode não gostar de beijo. Só dê a mão pra quem bem entender. Não, não precisa ser simpática e aceitar o sorriso e o colo de todos. Pode escolher bem quem teu corpo e tua alma querem por perto.”
A autora expõe suas inseguranças e medos, e revisita presente e passado enquanto vê a filha crescer. Suas dores a impulsionam a refletir e fazer para Nina escolhas mais conscientes sobre assuntos aparentemente banais, mas que moldam desde o nascimento nossa forma de existir no mundo. Uma pesquisa da UFPE de 2010 revelou que 90% das meninas entre 10 e 14 anos se acham gordas e fazem regime. A quem as mulheres devem beleza? Por que a beleza das meninas pressupõe laços desconfortáveis e brincos de furos doloridos, enquanto a dos meninos cabe em shorts confortáveis e cabeças livres?
“Nunca me dei bem com meu corpo. Foi quando engravidei de você que algo em mim mudou. Dessas relações que encontram leveza no caos. Leveza, filha, começa pelo aprender a dizer não. É o que chamo de “o não amoroso”. Não furamos sua orelha que é para você, Nina, escolher se sim ou se não. Não amassamos sua comida e nem distraímos você com o avião que é para você saber exatamente o que come e escolher o que te faz bem. E pesado mesmo é acreditar que a beleza mora nas capas de revista ou te ensinar a ser educada antes mesmo de ser honesta. Depois de você, Nina, aprendi que saúde é nunca calar o nosso corpo para ser amada por um outro.”
1001 dias com ela é um livro que fala de descobertas e também de convicções, aponta setas e alinhava sensações. Um livro íntimo e emocionante em sua simplicidade, revelador de uma ética feminista que é o chão da casa. Ler essa correspondência é espiar pela fechadura de um amor revolucionário, que propõe uma existência utópica de liberdade e verdade. Nos sentimos identificadas com a mãe que escreve e com a menina que receberá um dia, no futuro, as cartas que agora lemos.
“Nina, a culpa não é sua. Não é nossa. Você não fez por merecer. Eu não te criei com muita liberdade. Você não é louca. Não há nada de errado com o que você faz, veste ou com quem anda. Pode ser, filha. Quem você puder. Hoje, aos 19 meses, pode gostar de bola e trator. Pode rodopiar o vestido e encher a cabeça de laços. Não tem essa de aquilo é de menino e isso é de menina. Você pode, filha. Seja qual for a sua idade, seja qual for a complexidade desse poder. Vai sem culpa. E se dito isso mesmo assim restar alguma dúvida, pergunte a um homem próximo de você se ele carrega todos os dias essa culpa. Ou aquele medo. Se a resposta for não, bem-vinda à luta do tornar-se mulher (nota: leia Simone de Beauvoir). Bora essa culpa na conta de todos nós, mas não na sua. Nunca. Esse tempo e energia que você gastaria sozinha tentando achar o que fez de errado, aproveita para abraçar outra mulher e dizer a ela sem medo: confia em você. Vamos juntas. Ser mulher, mulher de verdade, é dar poder a outra mulher. Dizer com força e afeto que ela é dona dos seus caminhos, das suas vontades, de seus talentos. Dona do seu corpo e seu destino. Ofereça sempre suas mãos, minha filha, a outra mulher, mesmo que ela não tenha as mesmas escolhas que você. Isso, sim, te fará uma menina.”
1001 dias com ela
Histórias de uma família que acabou de nascer
Renata Magliocca
Editora Timo
88 páginas
Descrição: Independentemente do seu papel nessa comunidade tão crucial para a educação de uma criança, este livro é para aqueles que desejam aprofundar seu entendimento sobre a relevância do vínculo, da presença e das experiências memoráveis durante os primeiros 1001 dias de vida de um bebê.
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Maria Rezende é carioca de 78, poeta e performer de poesia, além de montadora audiovisual e celebrante de casamentos. Palavra escrita e falada andam juntas em seu trabalho. Tem seis livros publicados e já viajou com seus espetáculos pelo Brasil, Argentina, Portugal e Espanha. www.mariadapoesia.com