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‘AMORA’: um manifesto lésbico pop e sensível

Literatura feminista com Maria Rezende
14:44 17.09.2024
Autor

Literatura feminista com Maria Rezende

Escritora feminista
Universo feminino

‘AMORA’: um manifesto lésbico pop e sensível

Natalia Borges Polesso revela com naturalidade as mil facetas de mulheres que amam mulheres

Novabrasil - 17.09.2024 - 14:44
‘AMORA’: um manifesto lésbico pop e sensível
Capa de 'Amora'. Foto: Divulgação.

“Que gracinha sua filha brincando com o amiguinho, quando crescerem vão namorar!” “Você tem um menino e uma menina? Que amor, sempre quis ter um casal.” A gente ouve e repete essas coisas sem se dar conta do que está reproduzindo e reforçando: a heterossexualidade compulsória. O nome pomposo é recente mas a pressão sempre existiu e segue, essa expectativa irreal de que todas as crianças e bebês serão um dia jovens e adultos heterossexuais. Aliada às falas que se propõe brincalhonas, a falta de representatividade torna ainda mais difícil a vida de quem se descobre em uma das letras da sigla LGBTQIAPN+. Amora, livro da gaúcha Natalia Borges Polesso, vem na contramão dessa opressão. Lançado em 2015 e com reedição especial em 2022, foi vencedor dos prêmios Jabuti, Açorianos e AGES. É arte e política, é pop e denso, fala de relacionamentos mas vai além, revelando a naturalidade e complexidade da existência lésbica. Curioso pensar que quando lemos um romance com protagonista heterossexual, não dizemos se tratar de “um romance hétero”, assim como poemas escritos por uma poeta branca não são rotulados de “poesia branca”.

Amora é muito boa literatura, ponto. O livro de contos alia intencionalidade a mistério, humor a densidade, tesão a afeto. Surpreende e revela um amplo universo de mulheres das mais variadas idades, classes sociais, universos, tendo sempre em comum a existência lésbica em todas as suas múltiplas formas e possibilidades – ou impossibilidades e segredos. É autoficção e portanto invenção e fino labor literário. Nas palavras de Natalia: “Perguntas sobre autobiografia não surgem tão frequentemente para escritores homens brancos cis héteros, mas para nosotras sempre resta a incapacidade de fabular. Ou o desejo de mostrar nossa vida, de escrever o que vivemos. E qual é o problema disso? Eu queria fazer algo que me faltava, algo que eu não tinha lido ou por falta de produção ou por falta de circulação ou por falta de conhecimento, queria escrever algo abertamente LGBTQIAPN+, abertamente lésbico, abertamente lesbi, queria que isso fosse um a priori, queria algo pop, e assim fui criando o espaço dessa escrita.”

As histórias surpreendem. Há uma psicóloga de entrevista de emprego que se interessa mais pelo fato da candidata ser “uma lésbica assumida” do que por suas habilidades: “O que ela queria dizer com tal frase tão mal enjambrada? Umalésbicassumida, que diabos é isso?”. Há a menina intrigada com o apelido maldoso que sua vizinha recebeu: “A Celoí tentou de novo: vamos ver, por exemplo, tu gosta mais de boneca ou de carrinho? Depende qual boneca e qual carrinho. A Celoí revirou os olhos daquele jeito. Prefere dançar Xuxa ou brincar de pegar? Eu não sabia responder, porque tudo dependia e eu não estava entendendo aonde ela queria chegar. Tá bem, gosta de rosa ou azul? Gosto de verde. Meu deus, essa é sua última chance, gosta mais de mim ou do Claudinho? O Claudinho era um guri da rua que a Celoí achava lindo. De ti, é claro, eu respondi. Então tu é machorra, ela falou sem paciência.”

Natalia Borges Polesso. Foto: Divulgação.

No conto “Vó, você é lésbica?”, uma jovem se dá conta de que a amiga de sua avó que vinha todo dia tomar chá era na verdade seu grande amor, e reflete sobre a diferença entre o que as duas puderam viver e o que ela mesma está vivendo no momento: “Me ocorreu que talvez ela não pudesse ficar com a minha vó. Me ocorreu que nunca tivessem dançado, nem bebido juntas, ou sim. Pensei na naturalidade com que Taís e eu levávamos a nossa história. Pensei na minha insegurança de contar isso à minha família, pensei em todos os colegas e professores que já sabiam, fechei os olhos e vi a boca da minha vó e a boca da tia Carolina se tocando, apesar de todos os impedimentos. Eu quis saber mais, eu quis saber tudo, mas não consegui perguntar.”

Entre as personagens, há a jovem que não esconde nem revela propriamente seu namoro: “Quando eu falava da Natalia, eles já tinham uma ideia, mas nada era dito diretamente. Eu não acho que teria algum problema, mas só fui contar em outra ocasião, quando o nome em questão já era outro.” No conto “Minha prima está na cidade”, a protagonista esconde dos pais e colegas de trabalho seu casamento: “Minha família adora a Bruna, eles só acham engraçado ela morar comigo, já que é uma mulher feita que tem uma carreira relativamente estável, sabe? Acham que ela poderia já estar casada, morando com um marido bacana. (…)  Acontece que eu e a Bruna somos uma família, mas eu demorei para entender que éramos. Foi um dia em que eu fiquei bem doente e cogitei a possibilidade de passar a noite na casa dos meus pais, e a Bruna ficou puta comigo, com razão. Aquela era a nossa casa e eu podia me sentir bem e protegida ali.”

Contar. Revelar. “Sair do armário”. Amora mistura histórias em que essas questões e angústias são centrais, com outras em que não há dúvida ou peso, nada além da existência plena de mulheres vivendo suas vidas e amores. Lendo os contos como a mulher heterossexual que sou, vivi um espanto bom por mergulhar de forma inédita no universo do amor entre mulheres, ao mesmo tempo que me identifiquei com tantas situações. Através dos contos, refleti sobre como por tanto tempo os leitores LGBTQIAPN+ tiveram que adaptar as histórias que liam para conseguirem se identificar com elas. Que bom mudar de lado e ser eu a ler cenas de amor lésbico e imaginar como elas se encaixam também no amor que eu vivo, porque afinal o amor, o desejo, encontros e desencontros, são sempre universais em suas especificidades. Natalia é também uma craque da sensibilidade, com uma prosa poética delicada e forte: “Te chamo. Você: úmida. Desenho: saliva sobre travesseiro. Ao acordar: vinco, visco, isca, fecho os olhos. Você: presença.” “Vem me cobrir com os teus cabelos e deixar o teu perfume cítrico por horas em mim, vem me acordar com teu mau humor de brinquedo e passar as unhas, os pelos, a boca no meu corpo todo, anda pela minha casa desastrada e quebra um vaso velho sem flores que é para eu lembrar que será primavera em breve.”

São 35 contos – a edição especial lançada em 2022 traz três inéditos, além de depoimentos e textos que jogam luz sobre a importância da obra no cenário literário brasileiro, como o de Conceição Evaristo: “Amora continua provocante, a partir mesmo do título, inventando um feminino para a palavra amor, colocando no centro da narrativa de cada conto mulheres que amam mulheres. Relações homoafetivas sendo descritas não como amores malditos, mas como configurações possíveis de vivências amorosas.”

Capa de ‘Amora’. Foto: Divulgação.

Amora
Natalia Borges Polesso
Editora Dublinense
256 páginas
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Descrição

Ao se debruçar sobre as diferentes manifestações do amor entre mulheres, estas histórias revelam um delicado retrato do mundo sob a perspectiva de protagonistas repletas de nuances e complexidades. Juntas, elas formam um mosaico de violências, desejos, caos, ternura e liberdade. Obra vencedora do Prêmio Jabuti, traduzida e publicada em diversos países, Amora se tornou um clássico contemporâneo e ganha agora esta edição definitiva, com três novos contos e textos da autora e de convidadas refletindo sobre sua produção e importância.

Mini bio:

Natalia Borges Polesso nasceu em 1981. É escritora e tradutora, tendo livros publicados em diversos países, como Argentina, Espanha, Estados Unidos e Reino Unido. Ganhou e foi finalista de diversos prêmios, como o Prêmio Jabuti, o Prêmio São Paulo de Literatura, o Prêmio Açorianos de Literatura e o Prêmio Minuano. Entre seus títulos publicados, estão “Recortes para álbum de fotografia sem gente” (2013), “Amora” (2015), “Controle” (2019), “Corpos secos” (2020) e “A extinção das abelhas” (2021).

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Literatura feminista com Maria Rezende

Maria Rezende é carioca de 78, poeta e performer de poesia, além de montadora audiovisual e celebrante de casamentos. Palavra escrita e falada andam juntas em seu trabalho. Tem seis livros publicados e já viajou com seus espetáculos pelo Brasil, Argentina, Portugal e Espanha. www.mariadapoesia.com

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