O protagonismo feminino no esporte e na carreira
O protagonismo feminino no esporte e na carreira
Pesquisa feita com mulheres de diferentes gerações mostra o impacto da prática esportiva no ambiente corporativo
A pesquisa “Play To Lead: The Generational Impact of Sport on Women ‘s Leadership recém-divulgada pela Women’s Sports Foundation, feita com quase 3 mil mulheres entre 20 e 80 anos de idade, relaciona a capacidade de liderar ao hábito de praticar esportes ao longo da vida.
Entre as que disseram praticar esporte, 69% exercem pelo menos uma função de liderança formal fora da família e 71% delas são executivas em cargos de gerente, diretora, presidente – compondo o alto escalão.
Entre as principais habilidades destacam o trabalho em equipe (73%), o quanto aprendem com os erros (53%), a capacidade de lidar e suportar pressão (51%) e a superação de limites físicos (46%).
Entre as principais barreiras para a entrada e permanência de meninas no esporte estão: falta de grana (27%), falta de referências esportivas na família (20%), falta de oportunidades (20%) e preocupações com a possibilidade de sofrer lesões (17%).
Para materializar e personalizar esses dados, convidei para uma conversa a fantástica Rosicleia Campos, ex-atleta olímpica, ex-treinadora da seleção brasileira de judô feminino e hoje head coach do Flamengo.
A Rosi treinou muito, competiu muito, esteve ao lado das melhores judocas do Brasil por cinco ciclos olímpicos e aprendeu muito em todas as posições. “Para trabalhar no mundo corporativo é preciso ter disciplina, respeitar a hierarquia, gerir bem o tempo, as pessoas, as crises.
O esporte traz tudo isso. Se não tiver disciplina não vai acordar no outro dia para treinar, porque treinar é chato, cansativo, doloroso. Você precisa ter automotivação, porque o que te faz levantar e sair da inércia é exatamente o fato de estar motivado.
É preciso respeitar a hierarquia – você nem sempre vai concordar com seus superiores, os senseis no mundo do judô, mas é assim que funciona. E você precisa ter planejamento: se você não souber gerir o tempo, organizar o dia, dificilmente vai alcançar as suas metas e os seus objetivos”.
Segundo ela, o mais importante é levar em conta e respeitar as particularidades de cada pessoa. “Tanto um líder numa empresa como um líder treinador de atleta precisam entender de gestão de pessoas. Quando existe um time, existem pessoas diferentes: não tem padrão.
Dentro do judô, por exemplo, existem meninas que agem e reagem de formas diferentes, e o impacto da minha ação nessa pessoa vai repercutir na equipe. Temos que ouvir mais, elogiar em público, chamar atenção de forma individual, entender como aquela pessoa funciona”.
Rosi lembra os tempos de treinadora da Seleção Brasileira Feminina de Judô. “Antes da luta tem atleta que gosta que bata nas costas, que converse sobre sua adversária, que preferes falar da luta anterior, que só quer silêncio. Nossa atitude vai repercutir na competição. E assim também é dentro de uma equipe: pessoas diferentes agem e reagem de formas diferentes. Você tem que entender com quem está trabalhando, conversar para tirar o melhor delas”. E ouvir é uma boa (e necessária) ferramenta”.
Sobre as particularidades femininas no esporte e na carreira, Rosicleia reflete com muito conhecimento de causa. “Somos plurais, somos várias dentro de uma só, não desligamos e chegamos com uma carga diferente da dos homens. Por tudo isso somos especiais. Tão especiais que somos os únicos seres capazes de gerar uma nova vida – veja o nível de responsabilidade que temos. Trabalhar com mulher é saber ouvir, é entender como funcionamos, entender as nossas TPMs, ciclos hormonais, as fases mais amorosas, mais raivosas… Tudo isso é real. Homem não passa por isso. Tem hora que dá vontade de desistir, mas a disciplina, a responsabilidade e a persistência vão fazendo com que a gente não desista. E vamos que vamos!”.
Rosi Campos foi atleta em duas olímpiadas (92 e 96) e treinadora em cinco (2000, 2008, 2012, 2016 e 2020) e não só vivenciou como ajudou a transformar a lógica do time brasileiro de Judô. Apesar dos avanços, diz, ainda estamos atrasados em relação ao protagonismo feminino de forma geral. “A realidade é: vivemos, sim, numa sociedade machista, patriarcal, onde temos de estar sempre quebrando o bendito teto de vidro… Mas a coisa boa é que está mudando. Temos dados estatísticos animadores, apesar de ainda estarmos aquém.
Dentro do judô sou a segunda mulher a ser sétimo dan do Brasil (faixa coral, acima da preta, só abaixo da vermelha): isso representa 1%, é muito baixo. Apenas 8% das mulheres no mundo ocupam lugares de CEOs em grandes empresas, ou seja: temos só 8% de mulheres em empresas realmente com poder de decisão. É aí que precisamos brigar, por esse espaço, por esse poder de decisão, porque só assim a gente vai mudar essa sociedade patriarcal e machista”.
“O judô é um esporte visto como masculino e olha só o que promovemos no judô feminino, veja onde estão as judocas hoje, à frente dos homens. Mas isso não é sobre judô masculino, judô feminino: é sobre o judô.
Acontece que lá no começo foi preciso ter uma ruptura, porque as necessidades eram diferentes, eram esportes diferentes. Precisávamos de equidade para depois conseguir igualdade.
Equidade é ter ferramentas iguais para a gente poder alcançar a igualdade – e não tínhamos”. Foi essa trajetória constante e muito bem treinada e articulada que permitiu todo esse resultado e legado lindos, lembra Rosi. “Bias, Rafaelas, Saras, Larissas, Mayras, Ketleyns… Todo esse cenário foi mudando porque moldamos espaço, pelo planejamento voltado para as meninas, para as nossas necessidades”.
E para seguir firme e forte na evolução, rompendo barreiras e eliminando obstáculos culturais arraigados na sociedade machista, racista, patriarcal, homofóbica, Rosicleia Campos sugere: “Nos preparar é sempre fundamental, estar fundamentada naquilo que vai falar, estudar. Porque quando um homem fala ele não precisa de papel para provar nada; a gente precisa. Quando uma mulher erra em alguma coisa de futebol, por exemplo, é o fim do mundo, mas quantos homens falam um monte de besteira? Eles podem e a gente não pode. Também precisamos tomar cuidado para não nos masculinizar – me masculinizei muitas vezes, muitas vezes entrei nesses embates. Faz parte, mas precisamos prestar atenção. É importante sempre a gente revisitar esse nosso lado feminino, de sensibilidade única, que é o nosso grande diferencial”.